Vivemos gritantes distorções que se agravam no nosso dia-a-dia. Violência criminal sem precedentes; caos nos transportes públicos; incapacidade do setor público de saúde em atender minimamente à população; absoluta falta de rumo para enfrentar a crise de formação escolar dos jovens e adolescentes; descrédito crescente da população em relação aos políticos, à política e às suas instituições são exemplos nítidos de uma sociedade que se mostra doente.
Paradoxalmente, ou - pior - como grave sintoma desta enfermidade política e social, observamos uma absoluta alienação da maioria da população, e de seus ditos formadores de opinião, com o terrível quadro que se desenha na nossa realidade. Ao contrário, há uma inconseqüente atmosfera de otimismo no ar.
Em meio à crise global, "fomos dos primeiros a dela sair"; vamos sediar a Copa do Mundo de 2014 e o Rio de Janeiro foi a cidade escolhida para organizar as Olimpíadas de 2016; o Brasil agora integra o chamado G-20, "empresta dinheiro ao FMI", e os capitais externos apostam tanto no futuro do país que nos inundam com novos investimentos, em decorrência dos "bons fundamentos de nossa economia"; além, é claro, da descoberta dos campos do pré-sal...
Nos últimos anos, de fato, e tenho constantemente chamado a atenção para esse dado, tivemos taxas de crescimento econômico que há muitos anos não experimentávamos. De 2004 a 2008, crescemos acima da taxa de crescimento da população, o que não ocorria na economia brasileira desde os anos setenta. Além disso, o governo Lula foi bastante ativo, com políticas voltadas para atenuar os dramas dos setores miseráveis e pobres da base da nossa pirâmide social, com a política de valorização do salário mínimo, programas de transferência de renda e extensão de mecanismos de crédito a esses setores, além de programas questionáveis, como as bolsas do ProUni, mas de forte apelo popular.
Podemos ponderar que esse crescimento econômico se deu em meio a uma expansão notável de toda a economia mundial, e que o nosso próprio aumento do PIB foi extremamente ridículo frente às nossas possibilidades e bastante inferior ao alcançado pela quase totalidade dos países em desenvolvimento. Ou que a expansão dos mecanismos de crédito se deu em meio às maiores taxas de juros do mundo. Contudo, na experiência objetiva do povo, todos esses argumentos tornam-se abstratos, pois objetivamente - e dada a experiência nefasta dos governos FHC - imensas parcelas da população se sentiram mais aliviadas da exploração e da crise permanente em que vivem.
Mas, afinal, o que a equipe econômica do governo Lula tem a ver com tudo isso?
Eu diria que tudo. É lógico que a responsabilidade maior é do próprio Lula e de suas opções de política, e do que se convencionou chamar de "governabilidade": um eufemismo para a covardia ou incompetência de se lidar com os seus adversários políticos - ao menos da boca para fora - até as eleições de 2002.
Vejamos o que ocorre neste momento, em que os sintomas mais graves da crise financeira - que está em curso - deixam de se manifestar em sua plenitude, e nos induz a crer que "o pior já passou".
Recursos estrangeiros atacam especulativamente o país, voltam a valorizar Real, e apontam para a perspectiva de um déficit em conta corrente - de acordo com estimativas do próprio "mercado" - de 2% do PIB, em 2010. Gosto de me utilizar da expressão "ataque especulativo" para caracterizar o momento da entrada desses capitais no país - em geral, em busca de elevada e rápida valorização -, e não na saída dos mesmos, conforme é mais usual. Afinal, a abrupta retirada de recursos estrangeiros nada mais significa do que uma decorrência da permissão que nossas autoridades conferem aos detentores desses capitais, sabidamente em busca de lucros fáceis. Nesse raciocínio, o momento da entrada de recursos é o ataque, e o momento da retirada é apenas a defesa da rentabilidade obtida, pois a especulação é o pano de fundo de toda a movimentação.
O governo, frente às conseqüências que esse movimento de entrada de recursos externos provoca, resolveu taxar as aplicações de estrangeiros em títulos e na Bolsa com um IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) de 2%. O objetivo seria o de diminuir essa entrada de recursos, mas os seus efeitos são muito limitados, e deverão inibir parcialmente apenas as aplicações de curto prazo. Com as taxas de juros vigentes no país, dentre as mais altas do mundo, o alcance de uma medida desse tipo é muito limitado. A possibilidade de retorno financeiro atraente para os especuladores continua elevada, e frente à crise e às incertezas colocadas no mundo afora, o Brasil continua a ser um ótimo negócio para aplicações dos estrangeiros em títulos, ações ou outros ativos, como a aquisição de terras. Nossos "preços" estão muito baratos, a liquidez externa é enorme e as possibilidades de "bons negócios" internamente são variadas. Caso o objetivo do governo fosse mais sério, além da medida adotada, seria importante taxar com o imposto de renda os lucros obtidos com essas operações e impor prazos mínimos para a vigência dessas aplicações, a chamada quarentena, adotada em muitos países.
Mas esse é apenas mais um dos problemas decorrentes da chamada abertura de nossa conta de capital, peça-chave do modelo econômico em curso desde os anos noventa.
O próprio crescimento econômico mais acelerado - a taxas acima de 7% ao ano - perfeitamente viável, e necessário para o país e para a geração de empregos, também é visto como desaconselhável, pelos defensores do atual modelo. Com a abertura financeira e produtiva da economia, características deste modelo, taxas de crescimento elevadas provocam também a valorização do Real - dado o incentivo à entrada de capitais externos, em busca das oportunidades que o crescimento econômico gera -, com conseqüente perda de competitividade de nossas exportações e o crescimento das importações. A redução dos saldos comerciais, nesse processo, é inevitável e a ampliação dos déficits em conta corrente se agravam. A valorização da moeda nacional frente às moedas conversíveis estimula as remessas de lucro e as viagens internacionais, por exemplo, e acentuam o desequilíbrio estrutural de nossa conta de serviços, onde se computa também o pagamento de juros e encargos do endividamento externo, que por sinal continua muito bem, obrigado, apesar das parlapatices de que a "dívida externa acabou".
Enfim, são os velhos problemas de um modelo ultrapassado, mas que geram muitos lucros para uma parcela minoritária da população brasileira, e prejudicam as perspectivas de melhorias substantivas para o nosso povo.
Lula procura mudar a aparência desse quadro, com suas políticas voltadas para os pobres e miseráveis, mas coerente com os interesses maiores do sistema financeiro e das corporações transnacionais. E a esquerda, que sempre apoiou o agora presidente da República, em sua maior parte o acompanha na tentativa de legitimar o velho e atrasado modelo.
Essa, na verdade ex-esquerda, age como se fora uma espécie de força de reserva dos capitalistas em meio à crise global.
É lamentável, mas é a realidade."
(Fonte: Paulo Passarinho, do CORECON-RJ - Por e-mail da Fundação Lauro Campos)
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