Demonizados de um lado e enaltecidos de outro, são crescentes os estudos sobre o comportamento agressivo de pessoas em conflito com a lei. Embora muitos duvidem da boa intenção, tais pesquisas apresentam-se como uma ferramenta a mais na difícil tarefa de ressocializar adultos presos ou adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Um dos mais recentes trabalhos nesse sentido, aprovado pela Universidade de São Paulo (USP) como pesquisa de mestrado, classificou 40 meninos e meninas que praticaram atos infracionais quanto ao risco de reincidência, com base em um questionário canadense. Entre seis meses e um ano depois, os resultados se mostraram certeiros.
Nenhum dos 25% apontados com “risco baixo” voltou a cometer ilegalidades. A proporção subiu na medida em que a classificação indicava maior probabilidade. Até chegar aos 5% de adolescentes com “risco muito alto”, dos quais todos reincidiram. Denominado Youth Level of Service/Case Management Inventory (YLS/CMI), o questionário testado na pesquisa foi criado no Canadá inicialmente para adultos, mas acabou sendo remodelado para adolescentes. Com 42 itens, a nova versão, hoje, é utilizada em países como a Nova Zelândia e em parte dos Estados Unidos. Autora do estudo, Maria Cristina Maruschi acredita que o Brasil também pode se beneficiar do instrumento, testado por ela com garotos de Jaú, interior paulista.
Maruschi destaca, porém, que o teste não é uma forma de “rotular” o adolescente. “Mais do que simplesmente classificá-lo quanto ao risco de reincidir, a proposta desse instrumento é melhorar a qualidade da intervenção. Ao identificarmos quais fatores sustentam a conduta, podemos supor o tipo e a extensão da medida socioeducativa mais interessante”, diz a pesquisadora, mestre em ciências. Segundo Maruschi, não há no Brasil instrumentos sistematizados de avaliação dos fatores mais fortemente associados ao comportamento infracional na adolescência, desde aspectos de personalidade até os circunstanciais, como uso de drogas ou a ausência dos pais.
“A falta de critérios pode valorizar um fator que empiricamente não está associado ao ato infracional, levando a uma medida mais severa que o necessário. Por outro lado, ao analisar um ato mais leve e, portanto, aplicar uma medida menos severa, você pode ignorar uma necessidade daquele menino e colaborar com uma jornada de prática de infrações futuras”, afirma a pesquisadora. Entre os quatro aspectos mais relacionados a um alto risco de reincidência, explica Maria Cristina, estão atitudes como negar responsabilidades ou justificar atos ilegais. A estreita companhia de autores de atos ilícitos é outro fator de risco, assim como um histórico precoce de agressividade. Por fim, um padrão de personalidade antissocial, marcado pelo egoísmo e insensibilidade, completa o rol de pontos críticos.
Falta de higiene
O convívio familiar e na escola, as condições de lazer e o uso de drogas também são avaliados pelo questionário canandense. Embora destaque não conhecer o estudo, Ariel de Castro, vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considera importante instrumentos que avaliem melhor a realidade dos adolescentes infratores para que os serviços sociais atuem nas vulnerabilidades. “Até porque, caso contrário, eles terminam de cumprir a medida socioeducativa e retornam à criminalidade”, afirma Castro. Ele destaca que as condições dos centros de internação, hoje com cerca de 17 mil internos, estão melhorando aos poucos, assim como a implementação de medidas de meio aberto, que atendem atualmente cerca de 50 mil adolescentes.
Apesar das melhorias reais, em comparação ao que se tinha antes, ainda está distante do aceitável o funcionamento dos centros de internação de adolescentes no país. Por meio do programa Medida Justa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está inspecionando várias unidades de menores. Um dos mais recentes relatórios mostrou falta de higiene e de atividades para os internos, profissionais ociosos e adolescentes mantidos como presos em locais de internação em três municípios do Pará. De acordo com o coordenador do Medida Justa, Reinaldo Cintra, o problema detectado é de gestão. “O estado do Pará tem os prédios e os profissionais, mas os técnicos são subaproveitados, ficam vigiando os jovens”, conta. Em Goiás, o primeiro estado a passar pela inspeção, a situação também é precária.
Longe do consenso
A pesquisa de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo (USP) por Maria Cristina Maruschi é considerada pelo governo federal uma tentativa de rotular os adolescentes. “Estudos desse tipo servem apenas para estigmatizar e segregar ainda mais esses meninos. A sociedade precisa abrir mão de paradigmas de categorização”, critica Lúcia Elena Rodrigues, coordenadora geral do Programa de Implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) da Secretaria de Direitos Humanos. Ela destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já prevê instrumento alternativo: o Plano Individual do Adolescente. “Você ouve esse adolescente e vai construindo o projeto de execução da medida socioeducativa ao longo do processo para atendê-lo da melhor maneira possível”, explica.
Para o psiquiatra forense Luiz Carlos Ilafont Coronel, da Associação Brasileira de Psiquiatria, a postura do governo federal parte de um desconhecimento dos instrumentos consagrados internacionalmente. “Não falo de um questionário apenas. Mas de testagens psicológicas, a exemplo da pesquisa em questão, que fazem parte de uma avaliação mais abrangente usada para medir a periculosidade dos indivíduos. Ao adotar uma falsa teoria libertária carregada de ideologia, o que o poder público faz é prejudicar os assistidos, negando que eles têm um cérebro, negando possíveis depressões graves, negando possíveis distúrbios de comportamento. Como vou fazer uma abordagem psicoterápica em um adolescente deprimido, cujo cérebro está encharcado, se não sei disso? Enquanto ficarmos nessa negação da doença, teremos essa maravilha de sistema socioeducativo”, ironiza.
As críticas de Luiz Carlos Coronel se dirigem também ao sistema penal para adultos. Isso porque desde 2003 o exame criminológico, que avalia o grau de periculosidade dos presos, deixou de ser obrigatório. O governo federal conseguiu derrubar a regra, alegando falta de equipes para fazê-lo e consequentemente superlotação dos presídios. Um dos argumentos era de que o teste também feria direitos dos detentos. Agora, fica a critério do juiz pedir o exame ao decidir pela progressão de pena ou livramento condicional de um preso. O caso de Ademar Silva, o maníaco de Luziânia, criminoso sexual solto apenas pelos critérios objetivos (cumprimento de parte da pena e bom comportamento), apesar de haver um pedido do Ministério Público para elaboração do teste criminológico, ressuscitou o tema. No outro extremo, foi o mesmo exame que impediu Suzane von Richthofen, acusada de matar os pais, de progredir para o semiaberto.
(Fonte: Renata Mariz - Correio Braziliense)
Nenhum dos 25% apontados com “risco baixo” voltou a cometer ilegalidades. A proporção subiu na medida em que a classificação indicava maior probabilidade. Até chegar aos 5% de adolescentes com “risco muito alto”, dos quais todos reincidiram. Denominado Youth Level of Service/Case Management Inventory (YLS/CMI), o questionário testado na pesquisa foi criado no Canadá inicialmente para adultos, mas acabou sendo remodelado para adolescentes. Com 42 itens, a nova versão, hoje, é utilizada em países como a Nova Zelândia e em parte dos Estados Unidos. Autora do estudo, Maria Cristina Maruschi acredita que o Brasil também pode se beneficiar do instrumento, testado por ela com garotos de Jaú, interior paulista.
Maruschi destaca, porém, que o teste não é uma forma de “rotular” o adolescente. “Mais do que simplesmente classificá-lo quanto ao risco de reincidir, a proposta desse instrumento é melhorar a qualidade da intervenção. Ao identificarmos quais fatores sustentam a conduta, podemos supor o tipo e a extensão da medida socioeducativa mais interessante”, diz a pesquisadora, mestre em ciências. Segundo Maruschi, não há no Brasil instrumentos sistematizados de avaliação dos fatores mais fortemente associados ao comportamento infracional na adolescência, desde aspectos de personalidade até os circunstanciais, como uso de drogas ou a ausência dos pais.
“A falta de critérios pode valorizar um fator que empiricamente não está associado ao ato infracional, levando a uma medida mais severa que o necessário. Por outro lado, ao analisar um ato mais leve e, portanto, aplicar uma medida menos severa, você pode ignorar uma necessidade daquele menino e colaborar com uma jornada de prática de infrações futuras”, afirma a pesquisadora. Entre os quatro aspectos mais relacionados a um alto risco de reincidência, explica Maria Cristina, estão atitudes como negar responsabilidades ou justificar atos ilegais. A estreita companhia de autores de atos ilícitos é outro fator de risco, assim como um histórico precoce de agressividade. Por fim, um padrão de personalidade antissocial, marcado pelo egoísmo e insensibilidade, completa o rol de pontos críticos.
Falta de higiene
O convívio familiar e na escola, as condições de lazer e o uso de drogas também são avaliados pelo questionário canandense. Embora destaque não conhecer o estudo, Ariel de Castro, vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considera importante instrumentos que avaliem melhor a realidade dos adolescentes infratores para que os serviços sociais atuem nas vulnerabilidades. “Até porque, caso contrário, eles terminam de cumprir a medida socioeducativa e retornam à criminalidade”, afirma Castro. Ele destaca que as condições dos centros de internação, hoje com cerca de 17 mil internos, estão melhorando aos poucos, assim como a implementação de medidas de meio aberto, que atendem atualmente cerca de 50 mil adolescentes.
Apesar das melhorias reais, em comparação ao que se tinha antes, ainda está distante do aceitável o funcionamento dos centros de internação de adolescentes no país. Por meio do programa Medida Justa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está inspecionando várias unidades de menores. Um dos mais recentes relatórios mostrou falta de higiene e de atividades para os internos, profissionais ociosos e adolescentes mantidos como presos em locais de internação em três municípios do Pará. De acordo com o coordenador do Medida Justa, Reinaldo Cintra, o problema detectado é de gestão. “O estado do Pará tem os prédios e os profissionais, mas os técnicos são subaproveitados, ficam vigiando os jovens”, conta. Em Goiás, o primeiro estado a passar pela inspeção, a situação também é precária.
Longe do consenso
A pesquisa de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo (USP) por Maria Cristina Maruschi é considerada pelo governo federal uma tentativa de rotular os adolescentes. “Estudos desse tipo servem apenas para estigmatizar e segregar ainda mais esses meninos. A sociedade precisa abrir mão de paradigmas de categorização”, critica Lúcia Elena Rodrigues, coordenadora geral do Programa de Implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) da Secretaria de Direitos Humanos. Ela destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já prevê instrumento alternativo: o Plano Individual do Adolescente. “Você ouve esse adolescente e vai construindo o projeto de execução da medida socioeducativa ao longo do processo para atendê-lo da melhor maneira possível”, explica.
Para o psiquiatra forense Luiz Carlos Ilafont Coronel, da Associação Brasileira de Psiquiatria, a postura do governo federal parte de um desconhecimento dos instrumentos consagrados internacionalmente. “Não falo de um questionário apenas. Mas de testagens psicológicas, a exemplo da pesquisa em questão, que fazem parte de uma avaliação mais abrangente usada para medir a periculosidade dos indivíduos. Ao adotar uma falsa teoria libertária carregada de ideologia, o que o poder público faz é prejudicar os assistidos, negando que eles têm um cérebro, negando possíveis depressões graves, negando possíveis distúrbios de comportamento. Como vou fazer uma abordagem psicoterápica em um adolescente deprimido, cujo cérebro está encharcado, se não sei disso? Enquanto ficarmos nessa negação da doença, teremos essa maravilha de sistema socioeducativo”, ironiza.
As críticas de Luiz Carlos Coronel se dirigem também ao sistema penal para adultos. Isso porque desde 2003 o exame criminológico, que avalia o grau de periculosidade dos presos, deixou de ser obrigatório. O governo federal conseguiu derrubar a regra, alegando falta de equipes para fazê-lo e consequentemente superlotação dos presídios. Um dos argumentos era de que o teste também feria direitos dos detentos. Agora, fica a critério do juiz pedir o exame ao decidir pela progressão de pena ou livramento condicional de um preso. O caso de Ademar Silva, o maníaco de Luziânia, criminoso sexual solto apenas pelos critérios objetivos (cumprimento de parte da pena e bom comportamento), apesar de haver um pedido do Ministério Público para elaboração do teste criminológico, ressuscitou o tema. No outro extremo, foi o mesmo exame que impediu Suzane von Richthofen, acusada de matar os pais, de progredir para o semiaberto.
(Fonte: Renata Mariz - Correio Braziliense)
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