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terça-feira, 14 de abril de 2009

VIOLÊNCIA EXTRA E INTRAMUROS V

"A VIOLÊNCIA E SUAS REPERCUSSÕES SOBRE O FRACASSO ESCOLAR."
"As questões relativas aos sistemas simbólicos e à moralidade precisam ser dimensionadas e discutidas no tratamento da relação entre a violência física, a violência psicológica e o fracasso escolar. Como já vimos, a literatura clássica e contemporânea de Sociologia da Educação afirma a importância da escola na produção de hábitos sociais ou da socialização secundária, principalmente no que se refere à internalização e aprendizado de regras morais e de conhecimentos essenciais ao exercício da cidadania.

No Estado do Rio de Janeiro existem três tipos de escolas oferecidas aos pobres: a escola pública comum ou de tempo parcial, o CIEP ou a escola de tempo integral, e a escola particular, onde o acesso ocorre por meio de bolsa (salário educação). Desses três tipos de escola, a mais polêmica e rejeitada pelo pobre é o CIEP, a "escola dos ricos para pobres" (Mignot, 1994, p. 58). A pesquisa de 1995 constatou que os responsáveis avaliam que, na escola comum e na particular, a criança aprende melhor e não tem um atendimento diferenciado por ser pobre. O alto grau de rejeição ao CIEP desenvolvido pela população ao longo dos anos pode ser atribuído, em certa medida, ao entendimento de que, ao tratar a criança de maneira excessivamente assistencialista, a escola acaba reforçando a discriminação contra o pobre. Além disso, o "excesso" de atividades extraclasse e a instituição da aprovação automática (o aluno não sofre reprovação) fazem com que a população considere o ensino ministrado no CIEP mais fraco do que o oferecido nas outras escolas.

A respeito da produção do fracasso escolar, que engloba aspectos como evasão, repetência, carga horária insuficiente, promoção automática, entre outros, os dados da pesquisa de 1995 dão a dimensão do desafio que permanece e que precisa ser enfrentado. A evasão aparece mais nos depoimentos de alunos do CIEP (22%) do que nos da escola de tempo parcial (12%).

Nesta última, as razões mais apresentadas pelos estudantes para terem deixado de freqüentá-la foram em ordem decrescente: os problemas decorrentes da mudança de moradia, a violência na escola e a necessidade de trabalhar.
Para os alunos do CIEP, a ordem é diferente: primeiro, a violência na escola. São eles também que mencionaram a discriminação de aluno pobre e a violência no bairro como responsáveis por dificuldades na escola e no entorno, embora em percentuais baixos (5%).

A imagem do trabalho mencionada principalmente pelos alunos da escola de tempo parcial ou comum está associada sobretudo a "ganhar com o próprio suor do corpo" a fim de ajudar a família. Nas áreas pesquisadas, uma entonação diferente sobre esse item aparece na Mangueira, onde "ganhar suando" está também relacionado a ganho honesto. A população trabalhadora (alunos/responsáveis/lideranças) tem empregos formais seja nas empresas, seja nas casas de família (emprego doméstico, predominantemente para alunas), ou atua no mercado de trabalho informal, nas atividades de biscate. Em São Gonçalo, diferentemente das outras áreas, sobressai a importância do trabalho doméstico, seguido da atividade desenvolvida por conta própria. Entre os moradores da favela da Mangueira, a principal justificativa alegada para o abandono da escola é ter dinheiro próprio, constatação que se reforça com os depoimentos colhidos sobre a importância de se consumir produtos de grife.

A violência urbana ou extramuros figura, portanto, como um dos principais motivos de afastamento dos meninos e das meninas pobres de suas escolas, principalmente os primeiros, visto que repetência e evasão foram muito mais mencionados por eles. O tiroteio cada vez mais comum nos bairros populares e nas favelas, o uso de armas de fogo dentro dos prédios escolares, onde já ocorrem mortes de estudantes, e a presença de traficantes nessas comunidades têm prejudicado o rendimento escolar dos jovens, levando-os muitas vezes ao afastamento ou mesmo ao abandono dos bancos escolares. A existência de opções de trabalho informal no mercado ilegal das drogas, assim como outros tipos de crimes contra a pessoa e o patrimônio, também contribuem para diminuir, aos olhos dos alunos pobres, a importância da escolarização e das oportunidades de profissionalização que oferece.

Entre os motivos familiares para a evasão, é mencionado um conjunto de condições que se adicionam umas às outras para dificultar a continuidade da ida à escola: dificuldades econômicas ou desemprego dos provedores, mesmo que temporários; conflitos familiares e separações, algumas vezes com referências à violência doméstica; tarefas domésticas assumidas pelas meninas em substituição à mãe que sai para trabalhar fora; ausência paterna etc. O texto da revista Veja Rio (1993, p. 10) repete um quadro várias vezes observado ou escutado pelos pesquisadores:

[...] 12 anos, há seis cursando a 1ª série do 1º grau. Filha de um traficante, ela viu o pai ser morto dentro de casa. Falta muito às aulas para ajudar a mãe, diarista, a cuidar da casa, de sala e quarto, e dos três irmãos menores.

A repetência, segundo as imagens e explicações dos entrevistados, estaria associada a deficiências dos alunos: à freqüência insuficiente, ao desinteresse, à apatia, à preguiça, à dificuldade de acompanhar a turma, especialmente quando são aprovados automaticamente para as séries seguintes. Havia até mesmo referências, por parte dos mestres e dos responsáveis, a situações de deficiência mental. O depoimento de uma mãe reproduzido abaixo é significativo:

R. Eu acho que, pela idade dela, não está sabendo quase nada. Ela faz dois anos agora de colégio, mas não está sabendo quase nada.
P. E a senhora acha que o problema é dela ou da escola?
R. Eu acho que é dela, porque eu acho que vai da criança. Porque a gente acaba de ensinar, porque eu ensino muito em casa, daí a pouco ela não sabe mais aquilo. Eu acho que é da mente dela mesmo [...]
P. A senhora acha que a escola é boa?
R. Eu acho que a escola não tem nada, apesar de que eles brincam muito [...] Eu acho que é dela mesmo, uma garota com 8 anos que não tem noção de nada quase [...] Ela é assim muito lerda [...] não é assim uma criança muito ativa para aprender.
P. Todo ano passa?
R. Porque eu acho que colégio assim, do CIEP, acho que a criança não repete de ano não.
P. O que a senhora acha disso?
R. Eu acho que não é muito certo [...] porque a criança, no caso, tem que passar sabendo, né? Ela fez o ano passado, fez a alfa e passou para a primeira, mas eu acho que ela não tem condições de ficar na primeira. Então eu acho que isso aí não é o certo. Porque achava melhor ela ficar fazendo a alfa esse ano e, no ano que vem, passar para a primeira [...] Eles explicaram que o colégio CIEP é assim mesmo. Todo ano a criança passa, mas tem mãe que reclama e eles falam assim:
"Não, é isso mesmo." Mas eu acho que não tem condições.

São portanto fatores de ordem social — problemas familiares, violência no bairro, necessidade de trabalhar — ou psicológicos e afetivos — desinteresse, apatia, comportamento agressivo, suspeitas de deficiência mental —, sempre referidos aos alunos, os que mais contribuem, na opinião da população entrevistada, para explicar o fracasso escolar.

Esses dados sugerem haver uma tendência para a repetição, pelo menos uma vez, especialmente no primeiro segmento do ensino fundamental, atribuída pelos entrevistados a falhas do aluno: não acompanhar a turma, ter muitas faltas e ser desinteressado. Nessa situação destacaram-se as escolas de Duque de Caxias e de São Gonçalo. Já a evasão, quando ocorre, é atribuída prioritariamente à situação objetiva do aluno: ter de deixar a escola para trabalhar, enfrentar atitudes violentas, como agressões e ameaças dentro da escola, passando a correr risco de vida. Nesse caso estão principalmente as escolas de Mangueira e de Duque de Caxias.

A esses fatores em que o aluno é o centro do fracasso, presentes nas falas tanto dos professores quanto dos responsáveis, são agregados outros, que vêm a ser críticas à instituição escolar, tais como a forma de reprovação, o agrupamento de alunos em classes heterogêneas, onde convivem crianças e adolescentes de faixas etárias e de níveis de aproveitamento muito díspares. Finalmente, há as menções ao professor, partidas principalmente dos alunos, ressaltando sua incapacidade de ensinar, explicitada em expressões de 18% dos entrevistados, tais como "não conhece bem a matéria" ou "não explica bem", ou problemas na interação com os alunos, que incluem as atitudes agressivas, apontadas por 12%. Há ainda depoimentos de professores indicando que os pais manifestam o desejo de que seus filhos sejam tratados com o rigor de medidas como "botar o aluno de joelho" ou "de cara para a parede".

A forma como a escola e, principalmente, o professor tratam o aluno é considerada por alguns estudiosos uma variável que pode desencadear problemas de baixa estima manifestos em atitudes como desinteresse, apatia, ou atitudes agressivas. Em artigo que aborda a relação entre humilhação e vergonha na educação moral, Taille et al. (1992, p. 46) descrevem e analisam os resultados de pesquisa realizada no município de São Paulo em que se buscou "identificar as etapas e os mecanismos atuantes na construção da fronteira moral da intimidade, ou seja, na progressiva elaboração de regras que permitam ao sujeito decidir o que, de direito, pode ser incluído ou excluído do leque das pessoas-alvo das confissões de um delito e em que situação". Com base em entrevistas realizadas com 70 crianças com idade entre 6 e 12 anos a respeito de sua capacidade de discernimento moral e de estabelecimento de juízos sobre punição, a pesquisa de Taille e colaboradores concluiu que é somente entre 8 e 9 anos que a criança começa a ter noção da relação entre delito e possibilidade de punição com humilhação. E mais: que até 12 ou 13 anos as crianças não compreendem as razões das humilhações públicas.

De Durkheim, o estudo extrai a idéia de que a força da autoridade de quem pune tem origem no sentimento de vergonha do punido. De Kant, é destacada a importância da dignidade e do auto-respeito, como valores essenciais para a construção da moral. A esses autores é associada a contribuição de Piaget:

Os dados da Psicologia são coerentes com a afirmação de Kant segundo a qual as crianças pequenas ainda não têm o conceito de vergonha e de decência [...] Embora não trate deste tema, a teoria de Piaget sobre desenvolvimento de juízo moral permite-nos deduzir que o auto-respeito e a concepção da própria dignidade somente aparecem na criança quando esta começa a dar sinais de que compreende o valor do respeito mútuo [...] (Taille et al.,1992, p. 53)

O recurso da escola a procedimentos de castigo e humilhação de crianças precisa ser repensado, sob pena de o sujeito ter a sua estrutura afetiva abalada, o que pode ter como resultado a perda da auto-estima, a timidez, a revolta ou a falta de vergonha, o que significa, na perspectiva aristotélica, que o indivíduo despreza a opinião dos outros, ou seja, não desenvolve o respeito pela autonomia moral do outro, ou mesmo pela sua diferença. Este respeito, como vimos, é fundamental para o desenvolvimento de um habitus civilizado e não violento.

Um dos grandes problemas que emergiu de nossa pesquisa foi, assim, a confirmação de que o corpo docente e administrativo da escola mantém uma posição bastante distanciada do alunato, culpando-o pelo fracasso escolar, e que isto repercute no modo como os alunos pobres se vêem e seus responsáveis os consideram. Alguns depoimentos ilustram esses atributos negativos ainda fartamente utilizados para justificar o fracasso escolar:

Nós tínhamos uma fase de alunos aqui, a minoria graças a Deus, uns alunos que não passavam de ano. Então você notava... Um dia eu fui agarrar um menino que estava correndo assim e então me deu nervoso, porque eu senti a pele no osso [...] Dá uma sensação assim... é a mesma coisa quando você pega um sapo [...] (Diretora de escola que via na carência física a razão do fracasso escolar).

Essas crianças são engraçadas; elas aprendem assim momentaneamente. No momento que eles fazem o primeiro exercício, têm dificuldade; aí fazem um segundo, fazem um terceiro... aí fazem o resto. Mas se você for daqui a dois, três dias, né, naquela matéria, ele já possui certa dificuldade naquilo. O raciocínio deles é meio... meio lento, eles não... a verdade é que eles têm dificuldade de aprender [...] (Diretora de escola em Duque de Caxias sobre a carência intelectual).

A cultura deles é negativa [...] a gente aqui dentro procura moldá-los, né? Da melhor forma pessoal [...] A gente sempre procura assim levá-los ao teatro, quando tem uma promoção [...] para eles se socializarem, para eles terem outra visão na vida [...] (Diretora sobre carência cultural).

Essas afirmações demonstram de que modo um certo tipo de violência, a violência psicológica, capaz de deixar seqüelas profundas, pode ter origem na forma como a escola concebe a pobreza e o aluno pobre. Trata-se da confusão entre os inúmeros estilos e alternativas morais presentes nos grupos sociais dos quais os alunos fazem parte e o que é denominado de "cultura" do aluno pobre, termo muito mais abrangente e sugestivo de situação dificilmente modificável."
(Fonte: Alba Zaluar e Maria Cristina Leal)

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