A PESQUISA: O QUE PENSAM OS POBRES SOBRE A ESCOLA.
A pesquisa centrou-se nas relações entre a escola e os pobres, no tipo de escola oferecida a esse segmento da população e na maneira como crianças e adolescentes (alunos, ex-alunos, evadidos) e adultos (responsáveis, lideranças, professores, diretores) percebiam e avaliavam a escola pública e a qualidade da educação que ela presta a seus usuários. A investigação foi realizada em escolas comuns e CIEPs existentes em três áreas da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (favela da Mangueira no Município do Rio de Janeiro; favelas Vila Nova e Vila Ideal em Duque de Caxias e o loteamento Jardim Catarina em São Gonçalo).
Nessas áreas foram realizadas 246 entrevistas, a maioria das quais com alunas entre 11 e 13 anos, mas abarcando também alunos nesta faixa etária e de 14 a 17 anos e adultos maiores de 40 anos. Os alunos estavam freqüentando, majoritariamente, as cinco primeiras séries do ensino fundamental; os adultos (responsáveis) tinham, em geral, uma escolaridade limitada (ensino fundamental incompleto). Vários desses adultos eram analfabetos, o que revela a melhoria da escolaridade entre as gerações. Foram ouvidos 119 alunos, 60 oriundos de escolas comuns e 59 dos CIEPs. As entrevistas com estudantes de escolas comuns obedeceram uma distribuição mais ou menos equilibrada entre as áreas pesquisadas (37% em Mangueira, 30% em São Gonçalo e 33% em Duque de Caxias). Já as entrevistas com alunos de CIEPs concentraram-se mais em Duque de Caxias (49%) do que em Mangueira e São Gonçalo, locais onde foram realizadas apenas cerca de 25% delas.
Foram entrevistados também, nas três áreas, 8 diretores e 13 professores, num total de 21 entrevistas. Em Mangueira e Duque de Caxias foram feitas mais entrevistas com alunos (especialmente em Duque de Caxias) do que com seus responsáveis. Já em São Gonçalo a proporção de alunos entrevistados ficou muito próxima à dos responsáveis. Em Mangueira, o maior número de entrevistados pertencia à faixa etária de 11-13 anos (23%) e de alunos de 14-17 anos (23%), seguida de responsáveis com mais de 40 anos (18%). Duque de Caxias teve mais entrevistas de alunos de 11-13 anos (38%) e de adultos entre 25 e 39 anos (18%). Em São Gonçalo foram entrevistadas crianças de 11-13 anos (30%) e adultos de mais de 40 anos (34%). Assim, apesar de não ter sido possível realizar o mesmo número de entrevistas em cada setor, as diferenças não chegaram a comprometer a comparação entre elas.
Razão importante para focalizar as diferenças entre o CIEP e a escola comum foi o sistema adotado, no primeiro tipo de escola, da avaliação continuada do aluno, às vezes transformada mecanicamente em aprovação automática, inspirada em certas propostas do construtivismo e tida como "não tecnicista". Permitiu também identificar, do ponto de vista dos participantes do sistema educacional, o que mudou nos problemas compartilhados nos dois tipos de escola, tais como a relação entre os educadores e os usuários, a burocratização do trabalho pedagógico, a falta de reciclagem e a formação precária do professor, temas que integram a avaliação da qualidade de ensino. As demandas de ordem dentro da escola e as críticas ao sistema de aprovação automática foram as mais repetidas por alunos dos CIEPs e seus pais. A relação com o professor e demais figuras de autoridade parece estar sendo afetada, entre outros fatores, pelo uso freqüente de armas de fogo, conforme registros de nossa pesquisa. Neste artigo trataremos, em especial, de algumas das imagens sobre a violência reveladas pela pesquisa.
A família e a escola são as agências responsáveis pelo processo de socialização e aquisição de hábitos voltados, entre outras coisas, para a produção de consenso e de integração social. No relatório de pesquisa escrito em 1996 retratamos a convicção dos entrevistados a esse respeito. Quando discriminamos a imagem da educação por área pesquisada, constatamos pequenas diferenças na ordenação dos principais significados da educação. Enquanto em Mangueira predominam as idéias associadas a ter estudo (51% das menções), em Duque de Caxias essas idéias, que atingiram um percentual de 43%, estão mais equilibradas com aquelas vinculadas ao respeito aos mais velhos e outras pessoas, ao controle e à vigilância dos adultos (32%), seguidas da formação de hábitos sociais (24% das menções).
Em São Gonçalo, as imagens associadas à autoridade e à ordem (20%) quase sempre empataram com as que vinculam a educação à formação de hábitos (22%). Em Mangueira, os entrevistados privilegiaram a ordem (18% das afirmações), ao passo que a formação de hábitos de higiene, honestidade e caráter atinge percentuais mais baixos (15%).
Temos aí uma orientação mais instrumental, que sublinha a instrução acima dos valores gerais da educação, demonstrada por pessoas ligadas ao CIEP (43% em Duque de Caxias, 26% em São Gonçalo e 23% em Mangueira).
A pesquisa centrou-se nas relações entre a escola e os pobres, no tipo de escola oferecida a esse segmento da população e na maneira como crianças e adolescentes (alunos, ex-alunos, evadidos) e adultos (responsáveis, lideranças, professores, diretores) percebiam e avaliavam a escola pública e a qualidade da educação que ela presta a seus usuários. A investigação foi realizada em escolas comuns e CIEPs existentes em três áreas da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (favela da Mangueira no Município do Rio de Janeiro; favelas Vila Nova e Vila Ideal em Duque de Caxias e o loteamento Jardim Catarina em São Gonçalo).
Nessas áreas foram realizadas 246 entrevistas, a maioria das quais com alunas entre 11 e 13 anos, mas abarcando também alunos nesta faixa etária e de 14 a 17 anos e adultos maiores de 40 anos. Os alunos estavam freqüentando, majoritariamente, as cinco primeiras séries do ensino fundamental; os adultos (responsáveis) tinham, em geral, uma escolaridade limitada (ensino fundamental incompleto). Vários desses adultos eram analfabetos, o que revela a melhoria da escolaridade entre as gerações. Foram ouvidos 119 alunos, 60 oriundos de escolas comuns e 59 dos CIEPs. As entrevistas com estudantes de escolas comuns obedeceram uma distribuição mais ou menos equilibrada entre as áreas pesquisadas (37% em Mangueira, 30% em São Gonçalo e 33% em Duque de Caxias). Já as entrevistas com alunos de CIEPs concentraram-se mais em Duque de Caxias (49%) do que em Mangueira e São Gonçalo, locais onde foram realizadas apenas cerca de 25% delas.
Foram entrevistados também, nas três áreas, 8 diretores e 13 professores, num total de 21 entrevistas. Em Mangueira e Duque de Caxias foram feitas mais entrevistas com alunos (especialmente em Duque de Caxias) do que com seus responsáveis. Já em São Gonçalo a proporção de alunos entrevistados ficou muito próxima à dos responsáveis. Em Mangueira, o maior número de entrevistados pertencia à faixa etária de 11-13 anos (23%) e de alunos de 14-17 anos (23%), seguida de responsáveis com mais de 40 anos (18%). Duque de Caxias teve mais entrevistas de alunos de 11-13 anos (38%) e de adultos entre 25 e 39 anos (18%). Em São Gonçalo foram entrevistadas crianças de 11-13 anos (30%) e adultos de mais de 40 anos (34%). Assim, apesar de não ter sido possível realizar o mesmo número de entrevistas em cada setor, as diferenças não chegaram a comprometer a comparação entre elas.
Razão importante para focalizar as diferenças entre o CIEP e a escola comum foi o sistema adotado, no primeiro tipo de escola, da avaliação continuada do aluno, às vezes transformada mecanicamente em aprovação automática, inspirada em certas propostas do construtivismo e tida como "não tecnicista". Permitiu também identificar, do ponto de vista dos participantes do sistema educacional, o que mudou nos problemas compartilhados nos dois tipos de escola, tais como a relação entre os educadores e os usuários, a burocratização do trabalho pedagógico, a falta de reciclagem e a formação precária do professor, temas que integram a avaliação da qualidade de ensino. As demandas de ordem dentro da escola e as críticas ao sistema de aprovação automática foram as mais repetidas por alunos dos CIEPs e seus pais. A relação com o professor e demais figuras de autoridade parece estar sendo afetada, entre outros fatores, pelo uso freqüente de armas de fogo, conforme registros de nossa pesquisa. Neste artigo trataremos, em especial, de algumas das imagens sobre a violência reveladas pela pesquisa.
A família e a escola são as agências responsáveis pelo processo de socialização e aquisição de hábitos voltados, entre outras coisas, para a produção de consenso e de integração social. No relatório de pesquisa escrito em 1996 retratamos a convicção dos entrevistados a esse respeito. Quando discriminamos a imagem da educação por área pesquisada, constatamos pequenas diferenças na ordenação dos principais significados da educação. Enquanto em Mangueira predominam as idéias associadas a ter estudo (51% das menções), em Duque de Caxias essas idéias, que atingiram um percentual de 43%, estão mais equilibradas com aquelas vinculadas ao respeito aos mais velhos e outras pessoas, ao controle e à vigilância dos adultos (32%), seguidas da formação de hábitos sociais (24% das menções).
Em São Gonçalo, as imagens associadas à autoridade e à ordem (20%) quase sempre empataram com as que vinculam a educação à formação de hábitos (22%). Em Mangueira, os entrevistados privilegiaram a ordem (18% das afirmações), ao passo que a formação de hábitos de higiene, honestidade e caráter atinge percentuais mais baixos (15%).
Temos aí uma orientação mais instrumental, que sublinha a instrução acima dos valores gerais da educação, demonstrada por pessoas ligadas ao CIEP (43% em Duque de Caxias, 26% em São Gonçalo e 23% em Mangueira).
O significado da educação atrelado ao respeito, ao controle e à vigilância de autoridades aparece muito mais nos depoimentos de alunos dos CIEPs (37% das menções dos entrevistados, para 19% nas escolas comuns), particularmente em Duque de Caxias, onde quase 50% dos alunos se manifestaram dessa maneira. Alunos das escolas comuns mencionaram um número maior de vezes (57%, contra 49% no caso de alunos de CIEPs) imagens que valorizavam mais intensamente o estudo e a instrução, assim como a formação de hábitos (20% nas escolas comuns e 14% nos CIEPs). A visão dos diretores e professores sobre a educação está mais centrada na aquisição de hábitos e atitudes sociais (52% das menções), seguida da formação intelectual (34%) e, em terceiro lugar, da assimilação de algum sentido de autoridade (14%), invertendo as prioridades da educação do ponto de vista sustentado pelos responsáveis e pelos alunos. 70% dos alunos e 85% dos responsáveis consideram que se educa mais na família que na escola. A escola foi mencionada como a segunda instituição mais importante na educação por 29% dos alunos e 13% dos responsáveis, ou seja, estes reconheceram mais do que os alunos a importância da educação em casa.
Os docentes, ao contrário, acham que eles próprios são os principais agentes da educação (57%), concedendo esta função aos pais em 43% das entrevistas (Zaluar e Leal, 1996, p. 165).
O depoimento abaixo exibe a forma como alguns professores tendem a identificar e classificar os alunos a partir de falas agressivas (violência narrada):
Você vê, aqui se briga um com o outro: "Olha, vou te matar, hein? Você vai ver, vou pegar um revólver e vou te matar!"
Eles só falam coisas assim, a esse nível, tá? [...] Alunos problemáticos. A gente classifica de alunos problemáticos alunos que não têm boa sociabilidade. Alunos que não têm boa adaptação. A sociabilidade deles é muito agressiva.
A pesquisa identificou também, a partir das respostas dos entrevistados dos CIEPs e das escolas comuns à pergunta "o que provoca a violência no bairro?", as atrações e influências que as quadrilhas de tráfico e as galeras ("os amigos", "as más companhias") formadas para ir a bailes funk exercem sobre os jovens, levando-os ao etos violento ou guerreiro.
Nessas imagens, é a rua ou a atuação dos personagens que a dominam que conduzem os jovens a praticar violências.
Particularmente os "donos da boca", ou seja, os que comandam o tráfico nos bairros pobres e nas favelas, onde hoje são conhecidos como "donos do morro", e seus principais colaboradores, que atraem e cooptam os jovens que buscam viver de modo intenso, usufruindo de bens, poder e prestígio. Mesmo que muitos não tenham consciência disso, esse viver é também muito curto, pois a quase totalidade deles morre antes dos 25 anos.
São particularmente trágicas as menções a práticas e aprendizagens de violência que se referem aos códigos coercitivos que afirmam que vence o mais forte, enquanto os outros vivem discriminados e com medo. As mães entrevistadas, como em outras pesquisas (Zaluar, 1994), temem que seus filhos se tornem teleguiados por outra cabeça, quando a própria criança, ainda sem autonomia moral, "não vai pela cabeça dela", "vai sempre pela cabeça dos outros", "pega vício", "rouba", "perde-se", "vai para o mau caminho" (Zaluar, 1994a). Narrativas dramáticas de jovens que foram envolvidos pelas quadrilhas existentes em todas as áreas repetiram-se na pesquisa (Zaluar e Leal, 1996, p. 167).
Quando separamos as repostas de meninos e de meninas, observamos que a violência dos traficantes e das quadrilhas está mais presente nas respostas dos meninos (18%) do que nas das meninas (14%). Se para os meninos o segundo elemento causador de violência é o baile funk, para as meninas é a violência da polícia.
Até mesmo na favela da Mangueira, que há alguns anos se vangloriava de não ter traficantes ou bicheiros sustentando as atividades da escola de samba, o tráfico de drogas já se tornara uma presença marcante. A organização da droga é referida nas entrevistas como "movimento", uma alusão à rapidez das ações e das mudanças de pessoal que caracteriza o comércio da droga no varejo. O retrato da Mangueira hoje, tal como aparece em depoimentos dos entrevistados, parece ter mudado radicalmente em relação ao predominante há duas décadas atrás, quando o morro era apresentado como o local da música, da alegria e da solidariedade, apesar da pobreza e da necessidade:
Crianças acostumadas com a violência [...] a gente tem assim, é... dificuldade, né [...] de adequá-la a outro tipo de realidade, que ela só atende na base da violência porque tá acostumada [...] Então, o diálogo é difícil, tá, pra você chegar dentro de um padrão de normalidade que a sociedade em si ensina [...] (Professor da Mangueira)
O impacto que a experiência cotidiana da violência de rua tem sobre os jovens entrevistados pode ser avaliado neste depoimento de uma menina de 13 anos, entrevistada em outra favela, esta em São Gonçalo:
P. E lá fora, no bairro, na rua, tem muita violência?
R. Tem [...] Porque eles matam, fazem muita coisa. Meu irmão, faz dois anos que ele sumiu de casa [...] Foi de manhã.
Minha mãe estava trabalhando na delegacia [...] Aí foi meu irmão desde aquele dia que ele não apareceu [...] Meu irmão tinha 15 anos. Aí levou ele pra dentro do carro. Aí ele apareceu lá em casa, esse cara. Aí meu avô perguntou, aí ele falou que mataram ele [...] Aí meu avô foi no IML, viu ele, mas não queria dizer pra minha mãe, que minha mãe estava ficando maluca já. Minha mãe estava batendo em todo mundo [...] Meu irmão preferiu matar ele do que pegar eu e minha irmã.
Que o moço falou que um dia eles pegaram, começaram a judiar do meu irmão, pra ele vender o negócio. Aí meu irmão não queria fazer isso, eles obrigaram o meu irmão. Ele falou que se ele não fizesse isso ele ia pegar eu e minha irmã. Aí eles foram e pegaram o meu irmão. Meu irmão queria sair, meu irmão falou: "Então me mata, mas faz nada com as minhas irmãs". Aí foi, matou ele.
A forma como a violência de rua penetra na escola, preservada por códigos como a proibição da prática de delação e a ausência de vigilância efetiva dentro dela, pode ser dimensionada pelo depoimento dramático de uma mãe cuja filha de 10 anos estudava num CIEP de Duque de Caxias:
Ah, mas eu já perguntei a ela [...] qual a causa de você não querer ficar mais no Laguna? Ela respondeu: "Mãe, não é a tia, a merenda para mim é ótima, [...] mas tem uma coisa, as tias não sabem: as colegas têm vícios e já tentaram fazer até com que eu faça o que elas fazem". Aí eu perguntei: "Mas que vício?" Ela respondeu: "Não é cigarro, é um pozinho branco que as meninas colocam na mão dentro de um papel e ficam cheirando no banheiro e mandaram eu cheirar várias vezes. A senhora sabe me dizer o que é isso?". Eu falei para ela: "Isso é um tipo de tóxico, droga que as professoras e os diretores de repente não estão nem sabendo. Onde é que eles fazem isso?" Ela me falou: "Mãe, é no banheiro, a tia nem sabe". "E você não falou ainda com a sua tia?". "Mãe, eles ameaçam a gente, se eu falar que eu vi [...] lá fora eles vão me bater, eles me ameaçam [...] se você contar, eu vou te arrebentar". Sabe que criança tem medo, fica com aquele receio e não fala. E aí o problema vai crescendo [...]
Outra prática que tem se expandido nas escolas é o porte de armas pelos menores, fator responsável por acidentes e brigas, muitas vezes fatais. A narrativa da mãe de um aluno que teve de ser transferido para o CIEP ilustra bem a situação atual:
P. Que tipo de problema?
R. Problema de criança armada dentro da sala de aula [...] na sala dele. Aí eu descobri criança furada no joelho com canivete. Eu tive que chamar atenção, né? Falei com a diretora, a diretora disse que não tinha ninguém armado. No dia seguinte peguei o garoto com o canivete no bolso. As crianças furam mesmo, bem profundo mesmo no joelho. Teve que chamar pai e mãe. Aí começaram a ameaçar [...] depois bateram no meu filho lá, aí eu fui lá, tirei ele logo, na mesma hora.
Chamei a atenção e fui embora.
Os depoimentos e os dados apresentados ressaltam o confronto entre a violência física extramuros (na rua) e a violência intramuros, praticada na escola, demonstrando que as formas tradicionais de educação moral, até então presentes nas escolas públicas, não têm sido suficientes para impedir a invasão da escola pelos códigos e práticas que dominam as ruas das áreas pobres. O saldo desse confronto, que pode ser identificado nas estatísticas oficiais de mortalidade e nas violências as mais diversas cometidas contra a população jovem dessas áreas, sem registro, tem sido favorável aos responsáveis pela destruição de laços de civilidade e de vidas. A educação moral inspirada na obra de
Durkheim baseava-se na inculcação de regras e valores morais socialmente aceitos. Por trás dela havia uma teoria sobre o consenso social que não era posta em discussão. Entretanto, mesmo as novas concepções éticas, que se baseiam na liberdade de escolha entre múltiplas condutas morais e em valores divergentes e coexistentes, de qualquer modo sublinham a necessidade de fazer do sujeito da educação um ser capaz de fazer escolhas morais e, portanto, de exercer a autonomia moral numa sociedade caracterizada pela pluralidade de escolhas morais. É preciso, portanto, produzir com urgência ações políticas e processos educativos capazes de enfrentar essa realidade na qual, pela ausência de certezas, mas igualmente de balizamentos e limites, os jovens perecem em conflitos corriqueiros e destruidores.
Os docentes, ao contrário, acham que eles próprios são os principais agentes da educação (57%), concedendo esta função aos pais em 43% das entrevistas (Zaluar e Leal, 1996, p. 165).
O depoimento abaixo exibe a forma como alguns professores tendem a identificar e classificar os alunos a partir de falas agressivas (violência narrada):
Você vê, aqui se briga um com o outro: "Olha, vou te matar, hein? Você vai ver, vou pegar um revólver e vou te matar!"
Eles só falam coisas assim, a esse nível, tá? [...] Alunos problemáticos. A gente classifica de alunos problemáticos alunos que não têm boa sociabilidade. Alunos que não têm boa adaptação. A sociabilidade deles é muito agressiva.
A pesquisa identificou também, a partir das respostas dos entrevistados dos CIEPs e das escolas comuns à pergunta "o que provoca a violência no bairro?", as atrações e influências que as quadrilhas de tráfico e as galeras ("os amigos", "as más companhias") formadas para ir a bailes funk exercem sobre os jovens, levando-os ao etos violento ou guerreiro.
Nessas imagens, é a rua ou a atuação dos personagens que a dominam que conduzem os jovens a praticar violências.
Particularmente os "donos da boca", ou seja, os que comandam o tráfico nos bairros pobres e nas favelas, onde hoje são conhecidos como "donos do morro", e seus principais colaboradores, que atraem e cooptam os jovens que buscam viver de modo intenso, usufruindo de bens, poder e prestígio. Mesmo que muitos não tenham consciência disso, esse viver é também muito curto, pois a quase totalidade deles morre antes dos 25 anos.
São particularmente trágicas as menções a práticas e aprendizagens de violência que se referem aos códigos coercitivos que afirmam que vence o mais forte, enquanto os outros vivem discriminados e com medo. As mães entrevistadas, como em outras pesquisas (Zaluar, 1994), temem que seus filhos se tornem teleguiados por outra cabeça, quando a própria criança, ainda sem autonomia moral, "não vai pela cabeça dela", "vai sempre pela cabeça dos outros", "pega vício", "rouba", "perde-se", "vai para o mau caminho" (Zaluar, 1994a). Narrativas dramáticas de jovens que foram envolvidos pelas quadrilhas existentes em todas as áreas repetiram-se na pesquisa (Zaluar e Leal, 1996, p. 167).
Quando separamos as repostas de meninos e de meninas, observamos que a violência dos traficantes e das quadrilhas está mais presente nas respostas dos meninos (18%) do que nas das meninas (14%). Se para os meninos o segundo elemento causador de violência é o baile funk, para as meninas é a violência da polícia.
Até mesmo na favela da Mangueira, que há alguns anos se vangloriava de não ter traficantes ou bicheiros sustentando as atividades da escola de samba, o tráfico de drogas já se tornara uma presença marcante. A organização da droga é referida nas entrevistas como "movimento", uma alusão à rapidez das ações e das mudanças de pessoal que caracteriza o comércio da droga no varejo. O retrato da Mangueira hoje, tal como aparece em depoimentos dos entrevistados, parece ter mudado radicalmente em relação ao predominante há duas décadas atrás, quando o morro era apresentado como o local da música, da alegria e da solidariedade, apesar da pobreza e da necessidade:
Crianças acostumadas com a violência [...] a gente tem assim, é... dificuldade, né [...] de adequá-la a outro tipo de realidade, que ela só atende na base da violência porque tá acostumada [...] Então, o diálogo é difícil, tá, pra você chegar dentro de um padrão de normalidade que a sociedade em si ensina [...] (Professor da Mangueira)
O impacto que a experiência cotidiana da violência de rua tem sobre os jovens entrevistados pode ser avaliado neste depoimento de uma menina de 13 anos, entrevistada em outra favela, esta em São Gonçalo:
P. E lá fora, no bairro, na rua, tem muita violência?
R. Tem [...] Porque eles matam, fazem muita coisa. Meu irmão, faz dois anos que ele sumiu de casa [...] Foi de manhã.
Minha mãe estava trabalhando na delegacia [...] Aí foi meu irmão desde aquele dia que ele não apareceu [...] Meu irmão tinha 15 anos. Aí levou ele pra dentro do carro. Aí ele apareceu lá em casa, esse cara. Aí meu avô perguntou, aí ele falou que mataram ele [...] Aí meu avô foi no IML, viu ele, mas não queria dizer pra minha mãe, que minha mãe estava ficando maluca já. Minha mãe estava batendo em todo mundo [...] Meu irmão preferiu matar ele do que pegar eu e minha irmã.
Que o moço falou que um dia eles pegaram, começaram a judiar do meu irmão, pra ele vender o negócio. Aí meu irmão não queria fazer isso, eles obrigaram o meu irmão. Ele falou que se ele não fizesse isso ele ia pegar eu e minha irmã. Aí eles foram e pegaram o meu irmão. Meu irmão queria sair, meu irmão falou: "Então me mata, mas faz nada com as minhas irmãs". Aí foi, matou ele.
A forma como a violência de rua penetra na escola, preservada por códigos como a proibição da prática de delação e a ausência de vigilância efetiva dentro dela, pode ser dimensionada pelo depoimento dramático de uma mãe cuja filha de 10 anos estudava num CIEP de Duque de Caxias:
Ah, mas eu já perguntei a ela [...] qual a causa de você não querer ficar mais no Laguna? Ela respondeu: "Mãe, não é a tia, a merenda para mim é ótima, [...] mas tem uma coisa, as tias não sabem: as colegas têm vícios e já tentaram fazer até com que eu faça o que elas fazem". Aí eu perguntei: "Mas que vício?" Ela respondeu: "Não é cigarro, é um pozinho branco que as meninas colocam na mão dentro de um papel e ficam cheirando no banheiro e mandaram eu cheirar várias vezes. A senhora sabe me dizer o que é isso?". Eu falei para ela: "Isso é um tipo de tóxico, droga que as professoras e os diretores de repente não estão nem sabendo. Onde é que eles fazem isso?" Ela me falou: "Mãe, é no banheiro, a tia nem sabe". "E você não falou ainda com a sua tia?". "Mãe, eles ameaçam a gente, se eu falar que eu vi [...] lá fora eles vão me bater, eles me ameaçam [...] se você contar, eu vou te arrebentar". Sabe que criança tem medo, fica com aquele receio e não fala. E aí o problema vai crescendo [...]
Outra prática que tem se expandido nas escolas é o porte de armas pelos menores, fator responsável por acidentes e brigas, muitas vezes fatais. A narrativa da mãe de um aluno que teve de ser transferido para o CIEP ilustra bem a situação atual:
P. Que tipo de problema?
R. Problema de criança armada dentro da sala de aula [...] na sala dele. Aí eu descobri criança furada no joelho com canivete. Eu tive que chamar atenção, né? Falei com a diretora, a diretora disse que não tinha ninguém armado. No dia seguinte peguei o garoto com o canivete no bolso. As crianças furam mesmo, bem profundo mesmo no joelho. Teve que chamar pai e mãe. Aí começaram a ameaçar [...] depois bateram no meu filho lá, aí eu fui lá, tirei ele logo, na mesma hora.
Chamei a atenção e fui embora.
Os depoimentos e os dados apresentados ressaltam o confronto entre a violência física extramuros (na rua) e a violência intramuros, praticada na escola, demonstrando que as formas tradicionais de educação moral, até então presentes nas escolas públicas, não têm sido suficientes para impedir a invasão da escola pelos códigos e práticas que dominam as ruas das áreas pobres. O saldo desse confronto, que pode ser identificado nas estatísticas oficiais de mortalidade e nas violências as mais diversas cometidas contra a população jovem dessas áreas, sem registro, tem sido favorável aos responsáveis pela destruição de laços de civilidade e de vidas. A educação moral inspirada na obra de
Durkheim baseava-se na inculcação de regras e valores morais socialmente aceitos. Por trás dela havia uma teoria sobre o consenso social que não era posta em discussão. Entretanto, mesmo as novas concepções éticas, que se baseiam na liberdade de escolha entre múltiplas condutas morais e em valores divergentes e coexistentes, de qualquer modo sublinham a necessidade de fazer do sujeito da educação um ser capaz de fazer escolhas morais e, portanto, de exercer a autonomia moral numa sociedade caracterizada pela pluralidade de escolhas morais. É preciso, portanto, produzir com urgência ações políticas e processos educativos capazes de enfrentar essa realidade na qual, pela ausência de certezas, mas igualmente de balizamentos e limites, os jovens perecem em conflitos corriqueiros e destruidores.
(Fonte: Alba Zaluar e Maria Cristina Leal)
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