"Certa vez, ouvi de um oculista que a visão era o mais ambicioso e insaciável dos nossos sentidos, sempre buscando ver mais e com maiores detalhes. Dessa ânsia pelo ver, que é o elo vivo entre nosso íntimo e a realidade, nasceram o microscópio e o telescópio, hoje tão evoluído a ponto de já pairar na estratosfera, em busca dos confins do espaço sideral.
O exemplo bíblico da mulher de Ló, transformada em estátua de sal ao olhar para a destruição de Sodoma, demonstra que, desde quando existimos como espécie, nossa ambição de ver não é movida apenas pela sede de conhecimento, mas abrange um amplo espectro, que vai desde a curiosidade e a necessidade de sobrevivência até o desejo de saciar prazeres inconfessáveis. Vieira, no seu "Sermão das Lágrimas de São Pedro", proferido na Catedral de Lisboa, na segunda-feira da Semana Santa de 1669, abordou magistralmente essa faculdade humana de ver e de sentir pelo ver ao afirmar: "Chorai, pois (diz a Santa Igreja), chorai e chorem perenemente os vossos olhos; e pois esses olhos foram a fonte da culpa, sejam também a fonte da penitência: foram a fonte da culpa, enquanto instrumentos do ver; sejam a fonte da penitência, enquanto instrumentos de chorar; e já que pecaram vendo, paguem chorando."
Já em nossa contemporaneidade, não faz muito, li um artigo do Frei Leonardo Boff, onde, numa acerba crítica ao sistema de valores vigente, afirmava que a sociedade atual costuma adotar o que poderia ser chamado de estética do teratológico: se algo fere a nossa ética ou a nossa visão de mundo, passamos a enxergar aquilo como sendo parte do todo, inerente à estética desse todo e, por esse tolerante raciocínio, passamos a aceitar a novidade.
Hoje, ao me ver no vórtice de uma acirrada polêmica sobre o dever de cumprir o princípio constitucional da preservação da imagem das pessoas, veio-me à ideia utilizar os pensamentos de Vieira e Boff como base para explicar o porquê dessa resistência de certos setores da sociedade cearense em aceitar as medidas recentemente tomadas para o cumprimento da lei. Não se pode negar que os avanços tecnológicos na produção de imagens por meio digital, facilitando-lhes a divulgação, trouxe consigo o efeito perverso de nos transformar numa sociedade de "voyeurs".
Nunca a fome de ver esteve tão insaciável, a ponto de nos cegar, mesmo diante das mais sagradas barreiras morais e éticas de nossa civilização. Ver é o que importa e divulgar é preciso. Essa ânsia incontrolável tem levado até mesmo profissionais e órgãos de imprensa de reputações ilibadas a cair em tentações traiçoeiras como a de publicar, verbo ad verbum, o laudo de exame cadavérico de uma infeliz criança violentada e morta por um facínora impiedoso.
O que ganhou a sociedade cearense em saber como ficaram as partes íntimas daquela coitada, após os abusos que a que fora submetida pelo seu algoz? Provavelmente, o mesmo que ganhava, até bem recentemente, ao assistir a um misto de truão e repórter entrevistar presos nas delegacias de polícia para lhes indagar se as esposas iriam ou não os trair enquanto estivessem atrás das grades.
Tais reportagens, além de representarem autênticos tele-cursos de crimes e banalizarem a violência e o mal, foram passando a fazer parte de um folclore pernicioso e a integrar, paulatinamente, a estética midiática da sociedade cearense, merecendo, quando muito, a tímida oposição de algumas honradas e inconformadas vozes, que, a exemplo de D. Quixote, ousavam lançar-se contra os moinhos de vento dos Ibopes da vida.
Como próximo avanço dessa condenável estética, já se fala até na liberação das drogas, que, de tão consumidas e difundidas, poderiam ser aceitas como algo normal. Dito isto, é fácil compreender por que tanta celeuma quando se decidiu proibir a divulgação de imagens de presos na mídia, uma prática que ao longo dos anos só tem servido para fomentar as carreiras de jornalistas e de policiais inescrupulosos, que não passam de desavergonhados exploradores da miséria alheia e incautos violadores da Carta Cidadã."
ROBERTO MONTEIRO
Secretário da Segurança Pública do Estado do Ceará
(Fonte: Jornal O Povo, Opinião, edição de 23/02/2010)
O exemplo bíblico da mulher de Ló, transformada em estátua de sal ao olhar para a destruição de Sodoma, demonstra que, desde quando existimos como espécie, nossa ambição de ver não é movida apenas pela sede de conhecimento, mas abrange um amplo espectro, que vai desde a curiosidade e a necessidade de sobrevivência até o desejo de saciar prazeres inconfessáveis. Vieira, no seu "Sermão das Lágrimas de São Pedro", proferido na Catedral de Lisboa, na segunda-feira da Semana Santa de 1669, abordou magistralmente essa faculdade humana de ver e de sentir pelo ver ao afirmar: "Chorai, pois (diz a Santa Igreja), chorai e chorem perenemente os vossos olhos; e pois esses olhos foram a fonte da culpa, sejam também a fonte da penitência: foram a fonte da culpa, enquanto instrumentos do ver; sejam a fonte da penitência, enquanto instrumentos de chorar; e já que pecaram vendo, paguem chorando."
Já em nossa contemporaneidade, não faz muito, li um artigo do Frei Leonardo Boff, onde, numa acerba crítica ao sistema de valores vigente, afirmava que a sociedade atual costuma adotar o que poderia ser chamado de estética do teratológico: se algo fere a nossa ética ou a nossa visão de mundo, passamos a enxergar aquilo como sendo parte do todo, inerente à estética desse todo e, por esse tolerante raciocínio, passamos a aceitar a novidade.
Hoje, ao me ver no vórtice de uma acirrada polêmica sobre o dever de cumprir o princípio constitucional da preservação da imagem das pessoas, veio-me à ideia utilizar os pensamentos de Vieira e Boff como base para explicar o porquê dessa resistência de certos setores da sociedade cearense em aceitar as medidas recentemente tomadas para o cumprimento da lei. Não se pode negar que os avanços tecnológicos na produção de imagens por meio digital, facilitando-lhes a divulgação, trouxe consigo o efeito perverso de nos transformar numa sociedade de "voyeurs".
Nunca a fome de ver esteve tão insaciável, a ponto de nos cegar, mesmo diante das mais sagradas barreiras morais e éticas de nossa civilização. Ver é o que importa e divulgar é preciso. Essa ânsia incontrolável tem levado até mesmo profissionais e órgãos de imprensa de reputações ilibadas a cair em tentações traiçoeiras como a de publicar, verbo ad verbum, o laudo de exame cadavérico de uma infeliz criança violentada e morta por um facínora impiedoso.
O que ganhou a sociedade cearense em saber como ficaram as partes íntimas daquela coitada, após os abusos que a que fora submetida pelo seu algoz? Provavelmente, o mesmo que ganhava, até bem recentemente, ao assistir a um misto de truão e repórter entrevistar presos nas delegacias de polícia para lhes indagar se as esposas iriam ou não os trair enquanto estivessem atrás das grades.
Tais reportagens, além de representarem autênticos tele-cursos de crimes e banalizarem a violência e o mal, foram passando a fazer parte de um folclore pernicioso e a integrar, paulatinamente, a estética midiática da sociedade cearense, merecendo, quando muito, a tímida oposição de algumas honradas e inconformadas vozes, que, a exemplo de D. Quixote, ousavam lançar-se contra os moinhos de vento dos Ibopes da vida.
Como próximo avanço dessa condenável estética, já se fala até na liberação das drogas, que, de tão consumidas e difundidas, poderiam ser aceitas como algo normal. Dito isto, é fácil compreender por que tanta celeuma quando se decidiu proibir a divulgação de imagens de presos na mídia, uma prática que ao longo dos anos só tem servido para fomentar as carreiras de jornalistas e de policiais inescrupulosos, que não passam de desavergonhados exploradores da miséria alheia e incautos violadores da Carta Cidadã."
ROBERTO MONTEIRO
Secretário da Segurança Pública do Estado do Ceará
(Fonte: Jornal O Povo, Opinião, edição de 23/02/2010)
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