Só uma autora sem medo algum do ridículo, como Gloria Perez, poderia ter construído uma trama como "Caminho das Índias". Aliás, o despudor de misturar assuntos, ambientes e tramas é uma das marcas de sua carreira como teledramaturga – vide "O Clone", para citar apenas uma novela.
Os índices de audiência na reta final da novela sugerem que Gloria Perez acertou mais uma vez. O público gosta de dramalhões, vilãs femininas da pior espécie (como Yvone), traições, mulheres invejosas, vovôs espertos e amores impossíveis – desta vez, interditados pela tradição indiana de castas.
Como de hábito nas novelas de Gloria Perez, a trama incluiu um ingrediente que ela acrescentou à formula, o chamado merchandising social – no caso o drama da esquizofrenia e da internação psiquiátrica. Além de lições de moral à elite, por meio do ótimo núcleo formado pelo pit-boy Zeca mais Ilana e Cesar, seus pais deslumbrados e irresponsáveis.
Se analisados friamente, porém, os números do Ibope não são mais tão favoráveis a este modelo de teledramaturgia. Como mostrou a coluna "Outro Canal", na "Folha de S.Paulo", embora tenha alcançado impressionantes picos de 55 pontos de audiência na reta final, "Caminho das Índias", ao longo de seus 180 capítulos, obteve uma média geral inferior a 39 pontos. Esse resultado a coloca atrás de uma série de novelas recentes, como "A Favorita" (média de 39,5), que teve um mau desempenho, "Duas Caras" (41,1), "Paraíso Tropical" (42,8) e "Páginas da Vida" (46,8).
A influência de Janete Clair Gloria Perez já tinha "Caminho das Índias" inteiramente na cabeça quando concedeu, em 2006, duas longas entrevistas ao projeto Memória, da Rede Globo, posteriormente editadas no livro "Autores – Histórias da teledramaturgia", dois catataus de quase 500 páginas cada, com depoimentos de 16 autores globais. O capítulo dedicado a Gloria Perez, o último do primeiro volume, abre com uma foto em página dupla da autora, sentada diante do computador, mas brincando com um cachorrinho. Na página seguinte, uma fotografia exibe objetos encontrados no seu escritório, entre os quais destaca-se uma plaquinha com a frase: "Só os imbecis têm medo do ridículo", uma idéia atribuída a Nelson Rodrigues. A entrevista começa com Gloria detalhando a sua entrada no mundo das novelas. Diferentemente de outros autores, que relatam ter parado na televisão "por acaso", Gloria Perez sempre quis escrever para esta mídia. Fez várias tentativas, sem sucesso, até que, em 1983, Janete Clair (1925-1983) solicitou à Globo, pela primeira vez, um assistente para auxiliá-la a escrever a novela "Eu Prometo". Janete estava muito doente, enfrentando um câncer no intestino, e escrevia a novela no leito do hospital. "Eu Prometo" conta a história do deputado Lucio Cantomaia, casado com Darlene, com quem tem três filhas, mas vivendo uma paixão por Kely, uma fotógrafa. Em campanha para o Senado, o deputado não podia assumir o caso com Kely. Para piorar, ele descobre que Darlene teve um caso durante o casamento e que uma das três filhas que ele idolatrava não era dele. Ferida ao saber que Lucio a está traindo com Kely, Darlene resolve se vingar. E diz: "Minha vingança é que uma das tuas filhas não é tua. E você nunca vai saber qual delas. Para o resto da sua vida, você vai ser pai de todas e de nenhuma". Depois de relatar essa lembrança, Gloria Perez diz: "Eu nunca me esqueci dessa frase, nem dessa cena. Era bem Janete. Bárbara! Ela tinha um despudor maravilhoso, e esse era seu grande trunfo: não tinha medo de tocar nenhuma corda da emoção. Como Nelson Rodrigues, ela também achava que 'só os imbecis têm medo do ridículo'. Não foi à toa que ele foi um dos únicos intelectuais brasileiros – senão o único – a reconhecer a genialidade da Janete enquanto ela era viva". Gloria Perez é a mais fiel discípula de Janete Clair na teledramaturgia brasileira. Sem medo do ridículo, como acredita ter aprendido com sua mestra, encerra "Caminho das Índias" com metade do país colado à televisão. É um fenômeno. Resta saber, analisando os números mais friamente, se este modelo não está dando sinais de cansaço." (Fonte: Mauricio Stycer - Ig)
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