Eu sou segundo-tenente de Cavalaria da Reserva do Exército. Melhor dizendo, fui rebaixado, depois, para terceiro-sargento, por não ter feito o curso de aperfeiçoamento. Mas, sou, sim, um orgulhoso cavalariano da turma de 62, número 2611, apesar de quase ter sido expulso por minhas atividades estudantis, quando eu era o editor do jornal O Metropolitano, de notória tendência marxista-leninista, semanário que era lido com avidez pelos órgãos de repressão do Exército e onde só fui mantido graças à ajuda de um camarada-sargento do Partidão, da administração do quartel, que me avisou: "Olha aí... tu vai ser desligado."
Corri para meu pai, que veio em meu socorro. Meu pai era brigadeiro da Aeronáutica e entrou no quartel todo fardado - suas dragonas douradas brilhavam - e foi falar com o comandante do CPOR, entre continências respeitosas e sob meu olhar encantado com aquele apoio paterno sobre uma questão militar em que eu era pivô - eu, um reles comuna, sim, que sonhava em derrubar o imperialismo e seus aliados.
Não fui expulso e, hoje, confesso que não foi a única vez que tive orgulho do Exército.
O meu cavalo se chamava Himalaia, quando desfilei numa remota parada do 7 de Setembro. Passávamos vaselina no corpo do animal para que ele brilhasse ao sol da avenida, ajaezado com arreios de luxo, fazíamos uma trança em sua crina e, com os freios luzindo como ouro, desfilávamos com uma lança onde tremulava uma flâmula colorida, ao som de uma banda marcial. Dentro de culotes, botas e esporas, eu, o comuna montado, o bolchevique de cabelo zero, tremia de emoção patriótica.
Claro que não foram apenas dias de fulgor. O serviço militar era um inferno também. Quantas noites brancas, limpando bosta de cavalo, correndo por São Cristóvão às 3 horas da manhã, para pegar uma égua fugitiva que os "canalhas" da Artilharia soltavam para nosso desespero; daí termos inventado a doce melodia: "Quem quiser comer alguém/ seja noite ou seja dia/ dê um pulo na Artilharia."
Quanto horror da lama nas batalhas de Gericinó, do medo pavoroso de desmontar um morteiro de 81 mm que não explodira, quanto pânico quando os tenentes nos faziam pular obstáculos na Quinta da Boa Vista. Poucos conhecem o martírio de calçar os cavalos com ferraduras em brasa, sob os coices alucinados dos ditos corcéis e sob as vaias dos infantes e artilheiros empoleirados na cerca, nos sacaneando e nos chamando de "estrume".
Tudo isso criava um casco em minha alma frágil, que lia Rimbaud no vestiário e que uma vez, para pasmo do major, trouxe uma contribuição literária para a revista do Exército - uma poesia "trans-sintática" sobre O Cavalo - poema infelizmente nunca publicado pelos oficiais insensíveis e hoje perdido para a literatura e que (ainda lembro) falava em "o cavalo e sua quilha/ vogando entre lanças/ num campo de Ucello", recitado com ardor para o major, que certamente me achou meio "viado" (com i, por favor).
Depois, em 64, vi a UNE pegar fogo, comigo dentro. Depois, foi o horror da repressão, todo aquele baixo-astral: os "anos do milagre" da ditadura.
Mas, já naqueles anos eu também via certos detalhes da vida militar que me dão ainda hoje um travo de poesia brasileira. No fim do expediente, os oficiais garbosos de uniforme na caserna vestiam suas pobres roupas paisanas e iam para casa de bonde, visivelmente sozinhos e pobres em busca de suas famílias; ali, na tristeza daqueles dias militares, havia uns momentos de beleza rude. Havia as cornetas soando nas madrugadas cinzas, havia uma certa pureza medieval nos caibros das cocheiras, na cal das árvores pintadas, na comida brasileira das cantinas, no tosco desejo de ordem e progresso, num comovente patriotismo xucro. Havia uma solidão sacrificada nos milicos, nos soldos rasos, no orgulho dos uniformes, uma coisa positivista cambaia que eu via nas fileiras, como batalhões de "Policarpos Quaresmas".
Nas frestas do cotidiano, estava a missão militar despercebida. Naqueles hinos militares, que falavam em "pátria adorada", havia um projeto de Brasil até meio ridículo, mas puro. Nos bivaques e acampamentos, no texto parnasiano das ordens do dia, sentíamos uma rala e ingênua ideologia nacional, um tosco desejo de construir um país, tão estuprado pelos que realmente deitaram e rolaram no milagre brasileiro, transformando o Estado neste bordel de hoje. Hoje, já aprendemos; sabemos das táticas e técnicas dos corruptos e reacionários reais, pois a dolorosa contemplação dos escândalos que nos foram servidos pela democracia já faz parte da cultura política. Quando eu servia o Exército, tinha a sensação do desperdício de toda aquela organização verde-oliva numa luta abstrata contra os pobres guerrilheiros do absurdo. Eu pensava: hoje, os inimigos são a fome, a miséria endêmica; como esta imensa força de brasileiros de classe média poderia ser útil para "salvar" o Brasil.
E mais: os militares que conheci ultimamente ainda sofrem do preconceito que sobrou contra eles depois da ditadura. Ela foi terrível, sim, mas um general de hoje tinha cerca de 10 anos em 1964 e o Exército mudou muito. Claro que há contradições e atrasos, mas lá no Forte Apache, em Brasília, onde participei de um seminário, só vi homens bem informados, trabalhando em fronteiras e florestas e, mais importante que tudo, homens com um sentimento antigo, mas muito necessário hoje em dia - patriotismo.
Nesses anos de caserna, tive dois momentos de orgulho: um, quando meu pai entrou com as dragonas brilhando para me salvar; outra, quando meu coração bateu na Av. Presidente Vargas no 7 de Setembro, em cima do meu pangaré Himalaia.
Agora, houve a terceira onda de orgulho.
Na semana passada, vendo os militares treinados no Morro do Alemão, os paraquedistas treinados no Haiti, os tanques da Marinha, os helicópteros da FAB, pareceu-me estar ouvindo a banda tocar a Arma de Heróis em l962.
(Fonte: Arnaldo Jabor. Via e-mail do Gen. Freire)
Corri para meu pai, que veio em meu socorro. Meu pai era brigadeiro da Aeronáutica e entrou no quartel todo fardado - suas dragonas douradas brilhavam - e foi falar com o comandante do CPOR, entre continências respeitosas e sob meu olhar encantado com aquele apoio paterno sobre uma questão militar em que eu era pivô - eu, um reles comuna, sim, que sonhava em derrubar o imperialismo e seus aliados.
Não fui expulso e, hoje, confesso que não foi a única vez que tive orgulho do Exército.
O meu cavalo se chamava Himalaia, quando desfilei numa remota parada do 7 de Setembro. Passávamos vaselina no corpo do animal para que ele brilhasse ao sol da avenida, ajaezado com arreios de luxo, fazíamos uma trança em sua crina e, com os freios luzindo como ouro, desfilávamos com uma lança onde tremulava uma flâmula colorida, ao som de uma banda marcial. Dentro de culotes, botas e esporas, eu, o comuna montado, o bolchevique de cabelo zero, tremia de emoção patriótica.
Claro que não foram apenas dias de fulgor. O serviço militar era um inferno também. Quantas noites brancas, limpando bosta de cavalo, correndo por São Cristóvão às 3 horas da manhã, para pegar uma égua fugitiva que os "canalhas" da Artilharia soltavam para nosso desespero; daí termos inventado a doce melodia: "Quem quiser comer alguém/ seja noite ou seja dia/ dê um pulo na Artilharia."
Quanto horror da lama nas batalhas de Gericinó, do medo pavoroso de desmontar um morteiro de 81 mm que não explodira, quanto pânico quando os tenentes nos faziam pular obstáculos na Quinta da Boa Vista. Poucos conhecem o martírio de calçar os cavalos com ferraduras em brasa, sob os coices alucinados dos ditos corcéis e sob as vaias dos infantes e artilheiros empoleirados na cerca, nos sacaneando e nos chamando de "estrume".
Tudo isso criava um casco em minha alma frágil, que lia Rimbaud no vestiário e que uma vez, para pasmo do major, trouxe uma contribuição literária para a revista do Exército - uma poesia "trans-sintática" sobre O Cavalo - poema infelizmente nunca publicado pelos oficiais insensíveis e hoje perdido para a literatura e que (ainda lembro) falava em "o cavalo e sua quilha/ vogando entre lanças/ num campo de Ucello", recitado com ardor para o major, que certamente me achou meio "viado" (com i, por favor).
Depois, em 64, vi a UNE pegar fogo, comigo dentro. Depois, foi o horror da repressão, todo aquele baixo-astral: os "anos do milagre" da ditadura.
Mas, já naqueles anos eu também via certos detalhes da vida militar que me dão ainda hoje um travo de poesia brasileira. No fim do expediente, os oficiais garbosos de uniforme na caserna vestiam suas pobres roupas paisanas e iam para casa de bonde, visivelmente sozinhos e pobres em busca de suas famílias; ali, na tristeza daqueles dias militares, havia uns momentos de beleza rude. Havia as cornetas soando nas madrugadas cinzas, havia uma certa pureza medieval nos caibros das cocheiras, na cal das árvores pintadas, na comida brasileira das cantinas, no tosco desejo de ordem e progresso, num comovente patriotismo xucro. Havia uma solidão sacrificada nos milicos, nos soldos rasos, no orgulho dos uniformes, uma coisa positivista cambaia que eu via nas fileiras, como batalhões de "Policarpos Quaresmas".
Nas frestas do cotidiano, estava a missão militar despercebida. Naqueles hinos militares, que falavam em "pátria adorada", havia um projeto de Brasil até meio ridículo, mas puro. Nos bivaques e acampamentos, no texto parnasiano das ordens do dia, sentíamos uma rala e ingênua ideologia nacional, um tosco desejo de construir um país, tão estuprado pelos que realmente deitaram e rolaram no milagre brasileiro, transformando o Estado neste bordel de hoje. Hoje, já aprendemos; sabemos das táticas e técnicas dos corruptos e reacionários reais, pois a dolorosa contemplação dos escândalos que nos foram servidos pela democracia já faz parte da cultura política. Quando eu servia o Exército, tinha a sensação do desperdício de toda aquela organização verde-oliva numa luta abstrata contra os pobres guerrilheiros do absurdo. Eu pensava: hoje, os inimigos são a fome, a miséria endêmica; como esta imensa força de brasileiros de classe média poderia ser útil para "salvar" o Brasil.
E mais: os militares que conheci ultimamente ainda sofrem do preconceito que sobrou contra eles depois da ditadura. Ela foi terrível, sim, mas um general de hoje tinha cerca de 10 anos em 1964 e o Exército mudou muito. Claro que há contradições e atrasos, mas lá no Forte Apache, em Brasília, onde participei de um seminário, só vi homens bem informados, trabalhando em fronteiras e florestas e, mais importante que tudo, homens com um sentimento antigo, mas muito necessário hoje em dia - patriotismo.
Nesses anos de caserna, tive dois momentos de orgulho: um, quando meu pai entrou com as dragonas brilhando para me salvar; outra, quando meu coração bateu na Av. Presidente Vargas no 7 de Setembro, em cima do meu pangaré Himalaia.
Agora, houve a terceira onda de orgulho.
Na semana passada, vendo os militares treinados no Morro do Alemão, os paraquedistas treinados no Haiti, os tanques da Marinha, os helicópteros da FAB, pareceu-me estar ouvindo a banda tocar a Arma de Heróis em l962.
(Fonte: Arnaldo Jabor. Via e-mail do Gen. Freire)
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