1. Não podemos jamais esquecer que a violência urbana no Brasil, com suas características agudas e singulares, deriva da nossa histórica desigualdade e de um processo de urbanização que formou cidades da segregação de classes, onde prospera o que eu chamaria de 'cultura de apartheid social'. Mesmo neste 2010, uma alta autoridade pública como o Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, o correto delegado Allan Turnowski, expressa essa inculcação ideológica com sua afirmação destacada em manchete: "Se a Rocinha causar problemas na Zona Sul podemos ir lá no dia seguinte" (O Globo, 28/11/2010). Há muito o que ler nessa frase, para além do desejado protagonismo policial, sobre o lugar da favela, sua imagem perante parcelas da população, o papel do Estado em áreas sempre 'esquecidas'. Nesse ponto, cabe destacar a ausência de políticas públicas em áreas 'desassistidas' como uma política deliberada, que abre espaço para o assistencialismo, para o paternalismo, para a intervenção que mantém essas populações na subalternidade dos feudos eleitorais.
2. É preciso entender a economia do tráfico de armas e drogas como próspero negócio capitalista e transnacional. Há que se desvendar suas conexões internacionais, hierarquias, os 'barões' do atacado e os agentes do varejo, com sua 'burguesia' favelada e a exploração de seus toscos 'soldadinhos'. Há também o amálgama psicossocial, que os valores dominantes do individualismo consumista exaltam. Eles perpassam todas as classes sociais: a atratividade do 'poder' (das armas clandestinas, em muitos casos), o exibicionismo ostentatório e banalização da sexualidade, símbolos de afirmação na sociedade do mercado total. Há, nas coberturas dos condomínios da riqueza e no alto dos morros para onde a pobreza foi empurrada, uma geração fascinada por esses 'embalos'. Só que altamente letais para os sem-escola, que não são bandidos e sim estão na marginalidade do banditismo pela oportunidade mais fascinante, ou única, que lhes foi oferecida.
3. A autoridade tem sido parceira do crime. A denúncia desse continuado escândalo tem que continuar a ser feita. É inaceitável a Parceria Polícias/Crime: "Eles encontravam os traficantes e recebiam mesada na rua Cajá", conta um morador da Vila Cruzeiro (O Globo, 27/11/2010), referindo-se aos 'agentes da lei'. Sim, há territórios fora do controle público: por histórica omissão ou cumplicidade do próprio Estado, com seu caráter de classe, e de desprezo pelos 'de baixo'. Ainda há uma falsa polarização polícia x bandido, com tantos interesses escusos e criminosos embutidos na própria máquina estatal, que se materializam também em polpudas doações de campanha eleitoral. Difícil encontrar ação criminosa de vulto, no Rio de Janeiro, que não tenha contado com a participação societária de autoridades públicas.
4. Deve também ser percebido o lento declínio das formas sedentárias do negócio exclusivo das drogas, o que não é nenhum grande alento. "O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico, excessivamente custoso e vulnerável", lembra o antropólogo L. Eduardo Soares em seu blog (26/11/2010). Está se revelando a debilidade do ainda assustador 'exército de traficantes fortemente armado'. E, sobretudo, a falácia conceitual do tão propalado 'estado de guerra' ou 'guerra civil'. A inexistência de formulação político-ideológica dessas facções fica patente na própria 'ordem incendiária' recente. Um mínimo de tirocínio político recomendaria a estúpida ação intimidatória para antes das eleições...
5. O crime 'moderno' vincula-se à emergência e prosperidade das milícias. "São grupos voltados para uma lógica empresarial, com padrões de eficiência criminal mais elevados, diversificando comércio de atividades e serviços, inclusive o de 'segurança' e de votos", define o sociólogo Claudio Beato (FSP, 26/11/2010). As milícias – elogiadas até há pouco como 'auto-defesa comunitária' pelas principais autoridades políticas do RJ - são as protagonistas da reconfiguração da geopolítica do crime no estado: "De um lado, as milícias e alianças com uma das facções criminosas, de outro as que perdem hegemonia (...). Quem são os que faturam com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, controle milicianos de áreas, venda de votos e 'pacificações' para os megaeventos esportivos?", indaga o professor da UFRRJ José Claudio Alves, estudioso do assunto.
6. A experiência piloto das UPPs deve ser analisada em suas virtudes, potenciais e insuficiências. A par da inegável tranqüilidade imediata que a instalação das 1ªs Unidades Policiais trouxe, algumas indagações precisam ser feitas: trata-se, de fato, de um projeto sistêmico e com perspectiva estratégica? Como se articula a ocupação policial com a chamada 'UPP Social'? Considerando que as áreas ditas pacificadas, em especial na Zona Sul, têm alto valor no mercado imobiliário, que medidas estão sendo tomadas para que, no futuro, a composição social desses bairros pobres não se altere, por pressões da especulação? O que é certo é que a implantação desse 'novo padrão de combate à criminalidade', de adesão praticamente unânime, deu, até aqui, primazia à Zona Sul sociológica e ao chamado 'Corredor Olímpico'. Só os conflitos na região da Penha parecem ter alterado esse cronograma.
7. A Reforma das Polícias é um ponto fulcral. E de difícil execução. É ainda L. Eduardo Soares, com a experiência de quem tentou viabilizar esse processo quando ocupou direção de Segurança Pública no estado e na União, quem faz perguntas decisivas: "como, quem, em que termos e por que meio se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?". No âmbito do monopólio da força pelo Estado – legítimo se esse Poder Público for efetivamente republicano e democrático – também está o sistema penitenciário, verdadeiro internato de criminalidade, que não 'ressocializa' ninguém e ainda articula a deliquência. É igualmente decisiva sua reforma, radical.
8. Por fim (mas não por último) acreditamos que uma nova concepção de Segurança Pública implica, concomitantemente, na construção de novos padrões societários, igualitários, solidários, participativos, cooperativos. No imediato, ali onde o Estado chega ao cidadão comum, é revelador o bilhete deixado na porta de sua modesta casa por moradores do Complexo do Alemão, na 2ª feira, noticiado pela rádio CBN (29/11/2010): "Sr. Policial: saímos cedo pra trabalhar, as crianças ficaram dormindo, é só chamá-las. Por favor, não arrombem a casa! Ass.: os pais". No médio e longo prazo, essas dramáticas aflições cotidianas só serão superadas com Reforma Política, Reformas Agrária e Urbana, controle rigoroso da movimentação financeira pela COAF, controle das Fronteiras e debate sobre drogas ilícitas e sua legalização e controle, na ótica da saúde pública e da redução de danos. Segurança Pública é questão complexa o suficiente para ser tratada apenas como caso de polícia. Por outro lado, como lembrava o velho Marx, 'a humanidade não se coloca problemas que não possa resolver'. A agenda é extensa e urgente, comecemos já.
(Fonte: Chico Alencar - Via e-mail da Fundação Lauro Campos)
Nenhum comentário:
Postar um comentário