O importante neste desdobramento é como o sujeito expressa ou canaliza sua agressividade. Esta expressão pode se manifestar em três níveis básicos:
1- o sujeito canaliza sua agressividade para um alvo, um objetivo, uma meta ou uma realização. Exerce sua agressividade de modo a se expressar o mais genuinamente possível como pessoa, em busca do seu equilíbrio ou em prol de outros, ou da comunidade.
2- num outro nível, o sujeito engole sua agressividade, reprimindo-a e vai sorvendo-a como um veneno perigoso que vai pouco a pouco dilacerando e dissolvendo-o por dentro. Esta energia poderosa volta para o interior do indivíduo e provoca o efeito inverso ao esperado, promovendo assim um lento suicídio existencial que se caracteriza por uma "vontade de nada". Nestas circunstâncias a sentimento mal digerido volta-se contra o próprio indivíduo na forma de somatizações ou tornando-o um "insípido existencial".
3- aqui temos o sujeito que orienta sua agressividade para o próximo: por não encontrar seu próprio caminho, se ressente com o outro como se aquele fosse responsável pelo seu desassossego interior ou em última instância simplesmente odeia a felicidade do próximo porque esta dá testemunho de sua miséria existencial. Seu olhar neurótico detecta ali o obstáculo para sua felicidade, e começa a destilar canalizando para as pessoas a seu redor sua agressividade adoecida. No limite, esta agressividade degringola em ódio e violência, isto acontece quando a agressividade genuína na criança nunca foi reprimida aliado ao fato de que suas necessidades afetivas não foram supridas; é a típica criança invejosa que tudo pode e nada tem ou que nada teve e tudo quer.
Mas, afinal, o que é ser agressivo?
O homem começa sua caminhada rumo à civilização atento ao mais mínimo ruído vindo da floresta; o menor som poderia significar um perigo de morte ou apenas o almoço que se mexia sorrateiramente entre os arbustos. Para sobreviver, este homem primitivo aguçou seus sentidos para vencer os desafios da natureza e todos os dias "saía para matar um leão", lutava para abater sua presa a fim de que o grupo pudesse se alimentar. A vida era sistematicamente colocada em jogo, o instante seguinte poderia representar a morte e qualquer atitude demandava um alto grau de agressividade. Viver era extremamente perigoso.
Os anos se passaram e o homem agora já não necessitava pescar, caçar para sobreviver, os supermercados modernos substituíram a selva repleta de perigos por corredores impecavelmente limpos e abarrotados de enlatados, comida congelada e filezinhos de frango, boi e mussarela de búfalo. Tudo isto hermeticamente fechado, devidamente empacotado, sem os terrores da selva.... sem riscos.
Assim, o singular movimento do homem no sentido de apreender, abater para, de forma absolutamente categórica, sobreviver, já não se fazia necessário, ficou camuflado nas "facilidades" da civilização. No entanto, e para enganos de muitos, o homem continua utilizando sua agressividade para se manter vivo, só que agora, de forma elaboradamente sutil.
O próprio ato de comer, mastigar, demanda energia e um certo grau de agressividade. O ato sexual, descontadas as preliminares românticas, é essencialmente agressivo, sem falar no ato de parir. As necessidades básicas do ser humano continuam as mesmas e se desenrolam em graus maiores ou menores, mas sempre primitivamente agressivos.
Num certo sentido, para que haja transformação, mudança, e algo novo seja criado ou re-criado, energia, movimento, impulso e agressividade são requeridos. Esta "agressão no mundo" modifica o ambiente, transforma alimento em energia para o corpo e contrações vigorosas em um filho que vem à luz. Ações corriqueiras como dirigir um veículo numa avenida movimentada é algo extremamente agressivo, exige uma mudança de postura, reclama atenção do motorista, acende o alerta dos sentidos, exige do condutor e pedestres a prudência de um animal que passa por uma trilha perigosa.
Para um tímido, falar em público é um ato esplendidamente doloroso, que requer uma boa dose de coragem, ousadia e, obviamente, uma atitude agressiva diante do mundo. Não há ganhos sem esforço. A intrepidez que é pedida para que o tímido flua a contento implica em energia. Para que sua voz rasgue as paredes de sua garganta e adquira sonoridade, ele se dispõe a um esforço que o remete a desafiar antigos medos infantis. Todo desafio, aprendizado e superação de limites, obriga uma nova atitude diante do mundo, uma nova postura que implica ousadia e determinação. Enfim, uma postura que não se conforma no mundo mas se orienta no sentido de transformá-lo a partir de uma renovação dos padrões mentais.
A confusão que o senso comum faz em torno da agressividade é perfeitamente justificada porque suas fronteiras são tênues e se caracterizam por uma alta flexibilidade. Dependendo da orientação, sentido e de como se manifesta ela pode vir a ser pura violência. A agressividade genuína, canalizada para o alvo correto promove vida, renovação e crescimento, é fruto pacífico que produz alegria e satisfação pessoal. Como numa luta de judô, onde os oponentes se respeitam, os golpes e movimentos coordenados trabalham os músculos do corpo, proporcionando saúde física com um inevitável alívio de tensões, o que, ao final, redunda em um encontro esportivo para os companheiros. O boxe é um perfeito exemplo de mobilidade desta fronteira, quando o salto e a leveza do atleta que dança no ringue podem rapidamente converter-se em violência no pedaço de orelha que sangra entre os dentes.
Este último caso nos remete a uma briga de rua cujo endereço é a inimizade, mágoa e ressentimento, que podem descambar até em morte física quando a agressividade degringolou em violência; A diferença entre a agressividade genuína que se processa finalmente em vida e a mera violência ocorre quando este desdobramento redunda em morte, dor e ressentimento o que por sua vez, é acompanhado em todo o processo de uma malignidade a toda prova, ou seja, a destruição que gera destruição, a morte que gera morte.
Para entender este processo, tomemos a criança como sujeito da ação. Em um primeiro momento, podemos encontrar uma família cuja dinâmica familiar se articula em torno de muitas proibições, castigos, mas em meio a um ambiente rico de carinho e afeição. Este é um ambiente propício ao desenvolvimento de crianças com um alto nível de dependência dos pais ou responsáveis. A agressividade é reprimida e a criança se torna dependente, pouco criativa, mas obediente. É precisamente esta obediência cega decorrente da punição aleatória que camufla o mal que tal dinâmica familiar engendra.
Os pais costumam ficar muito felizes quando percebem seus filhos extremamente obedientes e dependentes emocionais seus mas, a rigor, os prejuízos futuros são imensos dada à dependência emocional e à ausência de uma feliz vida criativa, sem falar na inexistência de senso crítico o que os torna alvos fáceis para autoritários, ditadores ou sujeitos de caráter questionáveis.
Em outra perspectiva, encontramos um ambiente cujas bases são a punição com o agravante de ausência total de afeto, ou seja, um ambiente que se caracteriza pela hostilidade. Neste caso, os pais reprimem sistematicamente a agressividade do filho com mecanismos rígidos de controle regulados pela disciplina e castigo, seguidos de humilhações e bombardeios ferinos na auto-estima. O resultado será insegurança, timidez, introspecção e toda a carga hostil do ambiente a criança canaliza para o seu próprio corpo. A agressividade genuína que deveria orientá-la no seu relacionamento com o mundo degenera numa implosão emocional cujos efeitos devastadores repercutem na vida adulta.
Estes relacionamentos marcados por muitas imposições e pouca ou nenhuma afetividade se manifestam em crianças com tendência ao "auto-suplício", crianças que se distraem arrancando fios de seu próprio cabelo e, mais tarde, da barba; friccionando a casquinha dos machucados até sangrar e, depois, das espinhas; são crianças que se distraem supliciando seu próprio corpo.
Para que as crianças apresentem uma agressividade genuína e socialmente aceita, é necessário que os pais sejam permissivos com seus filhos, aceitando-os e compreendendo-os de forma incondicional, de modo que a independência e a criatividade sejam traços marcantes no comportamento da criança. Mas, todos estes aspectos seriam irrelevantes se, por outro lado, não for privilegiado nesta relação a imposição de limites claros, num exercício contínuo de respeito ao próximo e à natureza.
(Fonte: Renê Pereira Melo Vasconcellos)
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