"Ele nasce no mar e percorre 300 quilômetros pelo sertão cearense, todos os dias, em horários e intensidades que mudam conforme a cidade e a estação do ano. Nas ruas simples do Vale do Jaguaribe, a população aguarda religiosamente a sua passagem. O sopro diário do Aracati, que chega para refrescar e alimentar de esperança a vida das pessoas que vivem ali, no meio do sertão, é cercado de lendas e histórias. Foi atrás delas que eu e duas amigas - a diretora Julia De Simone e a roteirista Aline Portugal - viajamos, no fim do ano passado, para fazer a pesquisa que deu início ao documentário "Aracaty".
Chegamos a Fortaleza no dia 26 de dezembro e, antes de começar a viagem em direção às pequenas cidades do vale, encontramos o físico Henrique Camelo, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o assunto. Foi ele quem nos explicou que o percurso do vento está diretamente ligado ao Rio Jaguaribe:
- O rio funciona como canalizador do vento. Conduz o Aracati.
Dois dias depois, partimos em direção à cidade de Jaguaribe para sentir na pele o Aracati. Alugamos um carro e seguimos pela BR-116. A chegada à cidade foi um tanto desanimadora. Com um comércio relativamente grande e cerca de 36 mil habitantes, a imagem de pessoas sentadas em cadeiras de balanço nas calçadas à espera do vento mítico parecia não caber ali. Uma pausa para o almoço e uma bebida gelada para aliviar o calor do sertão refrescaram as ideias. Logo seguimos para a prefeitura em busca de alguém que pudesse nos guiar pela cidade. Foi lá que conhecemos Vânia Oliveira, que fez as vezes de nossa produtora. Pernambucana de 41 anos, ela um dia jogou sua aliança de noivado no telhado e foi embora para o Ceará. Anos depois, já casada, seu filho ficou um mês sem nome, até que um jornal caiu no seu colo e uma reportagem sobre Glauber Rocha lhe chamou a atenção. Pronto. Surgia mais um Glauber. Hoje, ela conhece todos em Jaguaribe e descreve assim a passagem do Aracati:
- Ele chega, levanta poeira, bagunça a casa, mexe o cabelo, faz voar o vestido.
As palavras de Vânia logo nos remeteram aos versos de José de Alencar em "Iracema": "O doce Aracati chega do mar, e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; um doce arrepio eriça a verde coma da floresta." A curiosidade só aumentava.
- A gente consegue reconhecê-lo? - indagamos as três, quase que simultaneamente.
- O Aracati é diferente. Vocês vão sentir quando ele chegar - diz Vânia.
Em Jaguaribe, o Aracati chega no início da noite. Como era o começo da tarde, ainda tínhamos tempo. De cara, Vânia nos levou ao restaurante Chico do Peixe, onde conhecemos dois típicos moradores da região, seu Abílio e seu Atílio, irmãos que todos os dias mantêm a tradição de esperar o Aracati passar. Dali, partimos para a casa deles, uma construção simples de tijolos, em meio à paisagem árida do sertão, que ganhou uma varanda, construída pelos próprios, só para esperar pelo Aracati.
Na sala, uma cena que poderia inspirar Van Gogh: apenas uma cadeira e, na parede, quatro quadros com imagens religiosas. Na outra extremidade, nada de televisão. Um rádio antigo é o que traz outras vozes ao espaço.
- O senhor tem quantos anos? - pergunto a seu Abílio, o mais falante dos dois.
- Nasci em 1935. Não sei fazer as contas - responde ele.
A tarde caiu. Além dos dois irmãos, um sobrinho, um vizinho e duas crianças se juntaram a nós. Seu Abílio deixou a timidez de lado e começou a contar causos. Todos escutavam histórias que iam de alma penada à piada do homem que fazia tudo errado e nem se matar conseguia. Uma brisa leve passa então pela varanda.
- É o Aracati? - as três perguntam, animadas.
- Ainda não. O Aracati faz um barulho quando chega e refresca mesmo. Vocês vão ver - responde seu Abílio.
A prosa continua e, de repente, o cabelo começa a voar, com a chegada de um friozinho gostoso que logo acalma o calor do sertão.
- O Aracati chegou! - exclamam todos, quase em coro.
Nas ruas, adultos e crianças, homens e mulheres, jovens e velhos, também comemoram a chegada do Aracati. A rua é o melhor ponto de encontro. Depois disso, Vânia nos leva até dona Dagmar, a poetisa da cidade.
- O Aracati é a nossa salvação. Ele passa mais forte entre agosto e janeiro. Se o vento atrasar, atrasa o inverno também - explica Dagmar. - O Rio Jaguaribe corre pro Aracati. No meio do percurso, banha os sonhos meus.
Ficamos dois dias em Jaguaribe e seguimos para os distritos de Feiticeiro, Mapuá e Nova Floresta. Quando chegamos a este último local, conhecemos o historiador Paulo Silva. Além de contar histórias sobre o Aracati, ele fez questão de caminhar pelas ruas conosco e nos levou até a casa onde Luís Carlos Prestes ficou hospedado quando a Coluna Prestes passou por lá.
- Quatro mil homens dormiram pelas ruas - conta Paulo, que, além de saber muitas histórias, também não perde a passagem do vento.
Seguimos depois rumo a Icó, a última cidade por onde passa o Aracati. O município, que surgiu no final do século XVII, tem vários casarões tombados e muitas histórias. Mas o tempo era curto, e não dava para perder o Aracati de vista. Naquela altura da viagem, já tínhamos percebido que era nos vilarejos menos populosos que surgiam as melhores histórias, especialmente se contadas por seus moradores mais antigos. Chegamos então ao sítio Poço da Pedra. Serafim de Oliveira Rodrigues, de 66 anos, foi a primeira pessoa que encontramos. Ele trabalha no abastecimento de água local, e paramos para lhe perguntar sobre o vento. Jeito simples, conversador, ele conta que no lugar vivem cerca de 40 famílias, e que as coisas estão mudando muito por ali:
- Desde 2003, as chuvas mudaram. Isso tem a ver com o degelo que está ocorrendo no mundo.
Em Poço da Pedra, o Aracati passa na hora da novela das oito. É nesse momento do dia que a pequena Suely, de 8 anos, faz uma fogueira com a ajuda do tio, na frente de casa, e aproveita para secar as panelinhas de barro que gosta de fazer. A menina mora com a avó, dona Geralda, de 66, que nos convidou para dormir em
sua casa. Durante a noite, enquanto esperávamos o Aracati passar, sentamos em tapetes em volta da fogueira e escutamos muitas histórias.
- Teve um dia em que o Aracati passou tão forte que perdemos a telha da casa - conta dona Geralda, mãe de oito filhos e avó de 14 netos.
Seu Serafim, que tirou o dia para nos acompanhar, relembra o momento em que ele e a família quase se afogaram no rio por causa do vento:
- Era noite e estávamos em cinco barcos. Quando o Aracati passou, mexeu com tudo e caímos na água. Nadamos até a margem e chamamos um por um pelo nome para saber se todos estavam sãos e salvos.
Nesse dia, ninguém precisou nos dizer nada: sentimos na hora o Aracati chegar. Ele veio e logo ajudou a espalhar a brasa e a apagar a fogueira. Era a hora de nos recolher. Naquela noite, dormimos em redes na casa de dona Geralda, embaladas durante várias horas pelo sopro do Aracati.
Nos dias seguintes, passamos pelos vilarejos de Tabuleiro, Limoeiro do Norte, Russas e Jaguaruana. Neste último, o radialista Augusto nos levou até outra lenda viva da região, Zé da Marieta, o profeta da chuva local. Aos 62 anos, é ele quem faz a previsão de como será o inverno no sertão: bom (com muita chuva) ou seco. Ele nos conta que sua análise é feita a partir de observações tanto do movimento dos planetas quanto do canto de um pássaro durante a lua cheia. E o comportamento do Aracati, claro, jamais fica fora de suas previsões.
- Só sei escrever meu nome, mas desde os 14 anos começaram a me ensinar a saber quando a chuva chega - conta o profeta, casado com dona Maria, com quem tem 11 filhos e 16 netos.
Cabelos brancos como algodão presos em coque, rosto marcado pelo tempo e voz mansa, outra habitante de Jaguaruana, dona Nazaré, de 94 anos, gosta de sentir o vento batendo no rosto:
- Sua brisa acalma a gente.
A viagem termina em Aracati, cidade batizada com o nome do vento porque é justamente ali que começa a sua trajetória pelo sertão. O lugar, não por acaso, é conhecido pela produção de energia eólica. Os cataventos nos serviram de inspiração, assim como as cadeiras de balanço, as roupas secando no varal, os rostos do povo simples que mora ali. Afinal, durante toda a viagem, o principal desafio era traduzir o Aracati em imagens. Todos os dias, antes de dormir, assistíamos ao material gravado e discutíamos os próximos passos.
Antes de partir para o Ceará, passamos um ano trabalhando na busca de informações sobre o Aracati, que em tupiguarani significa bons ventos. O objetivo da ida ao Ceará também era coletar imagens para serem exibidas na feira Real Screen Summit, em Washington, especializada em documentários e programas de TV, que começa amanhã. No início de dezembro, o projeto foi apresentado no Pic Doc (Programa Internacional de Capacitação para Documentários), ganhou elogios do francês Emmanuel Priou, produtor de "A marcha dos pinguins", e ficou entre os dez melhores, o que lhe garantiu a participação na feira americana. Os dez dias de viagem enriqueceram a pesquisa sobre esse vento que povoou o nosso imaginário por tanto tempo. O próximo passo é transformar tanta espera em encontro. Em "Aracaty"."
(Fonte: Júlia Motta - O Globo)