O CONTEXTO SOCIAL E INSTITUCIONAL DA VIOLÊNCIA
A discussão sobre a violência no Brasil adquiriu grande importância nos últimos dez anos, passando a mobilizar cientistas sociais, pedagogos, filósofos, economistas e juristas. As fontes teóricas, nem sempre explicitadas, foram muito variadas, entretanto, o que produziu um debate disperso (Zaluar, 1999). Muitos autores preocuparam-se em marcar as diferenças entre poder e violência, inspirando-se em Hannah Arendt quando caracteriza a violência como um instrumento e não um fim. Os instrumentos da violência, segundo esta autora, seriam mudos, abdicariam do uso da linguagem que caracteriza as relações de poder, baseadas na persuasão, influência ou legitimidade.
Outras definições não fogem desse paradigma, mas incorporam a palavra na sua definição: a violência como o não reconhecimento do outro, a anulação ou a cisão do outro (Adorno, 1993 e 1995; Oliveira, 1995; Paixão, 1991; Tavares dos Santos et al., 1998; Zaluar, 1994); a violência como a negação da dignidade humana (Brant, 1989; Caldeira, 1991; Kowarick e Ant, 1981); a violência como a ausência de compaixão (Zaluar, 1994); a violência como a palavra emparedada ou o excesso de poder (Tavares dos Santos et al., 1998). Em todas elas ressalta-se, explicitamente ou não, o pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo.
Tavares dos Santos é um dos autores que mais tem refletido sobre a questão teórica da violência, reflexão esta devedora das idéias de Michel Foucault e de Pierre Bourdieu. Ele a define como uma forma de sociabilidade "na qual se dá a afirmação de poderes, legitimados por uma determinada norma social, o que lhe confere a forma de controle social: a violência configura-se como um dispositivo de controle, aberto e contínuo". Mas a violência não seria apenas a sua manifestação institucional, pois a "força, coerção e dano em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder" estaria "seja no nível macro, do Estado, seja no nível micro, entre os grupos sociais". Sua forma social contemporânea estaria expressa no "excesso de poder que impede o reconhecimento do outro — pessoa, classe, gênero ou raça — mediante o uso da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, configurando o oposto das possibilidades da sociedade democrática contemporânea" (Tavares dos Santos et al., 1998). O problema desta definição parece estar em que não esclarece onde e como o excesso se manifesta, o que implica dizer os limites, as regras, as normas legitimamente aceitas para o exercício do poder. Isso evidentemente desembocaria no Estado de Direito e na construção da nação. Qualquer que seja o balizamento do excesso de poder, afirmá-lo conduz à questão não discutida do limite (Zaluar, 1999).
Todavia, para este autor, desapareceria a fronteira entre a violência física, a qual oprime pelo excesso da força corporal ou armada, e a simbólica, a qual exclui e domina por meio da linguagem. Não haveria, portanto, um nicho especial para tratar da violência como o uso de instrumentos da força bruta (Zaluar, 1999), desarticulada da violência simbólica presente no institucional ou no Estado, como fica claro no trecho seguinte, referido às idéias de Foucault e de Bourdieu:
Podemos, deste modo, considerar a violência como um dispositivo de excesso de poder, uma prática disciplinar que produz um dano social, atuando em um diagrama espaço-temporal, a qual se instaura com uma justificativa racional, desde a prescrição de estigmas até a exclusão, efetiva ou simbólica. Esta relação de excesso de poder configura, entretanto, uma relação social inegociável porque atinge, no limite, a condição de sobrevivência, material ou simbólica, daqueles que são atingidos pelo agente da violência. (Tavares dos Santos et al., 1998)
A discussão sobre a violência no Brasil adquiriu grande importância nos últimos dez anos, passando a mobilizar cientistas sociais, pedagogos, filósofos, economistas e juristas. As fontes teóricas, nem sempre explicitadas, foram muito variadas, entretanto, o que produziu um debate disperso (Zaluar, 1999). Muitos autores preocuparam-se em marcar as diferenças entre poder e violência, inspirando-se em Hannah Arendt quando caracteriza a violência como um instrumento e não um fim. Os instrumentos da violência, segundo esta autora, seriam mudos, abdicariam do uso da linguagem que caracteriza as relações de poder, baseadas na persuasão, influência ou legitimidade.
Outras definições não fogem desse paradigma, mas incorporam a palavra na sua definição: a violência como o não reconhecimento do outro, a anulação ou a cisão do outro (Adorno, 1993 e 1995; Oliveira, 1995; Paixão, 1991; Tavares dos Santos et al., 1998; Zaluar, 1994); a violência como a negação da dignidade humana (Brant, 1989; Caldeira, 1991; Kowarick e Ant, 1981); a violência como a ausência de compaixão (Zaluar, 1994); a violência como a palavra emparedada ou o excesso de poder (Tavares dos Santos et al., 1998). Em todas elas ressalta-se, explicitamente ou não, o pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo.
Tavares dos Santos é um dos autores que mais tem refletido sobre a questão teórica da violência, reflexão esta devedora das idéias de Michel Foucault e de Pierre Bourdieu. Ele a define como uma forma de sociabilidade "na qual se dá a afirmação de poderes, legitimados por uma determinada norma social, o que lhe confere a forma de controle social: a violência configura-se como um dispositivo de controle, aberto e contínuo". Mas a violência não seria apenas a sua manifestação institucional, pois a "força, coerção e dano em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder" estaria "seja no nível macro, do Estado, seja no nível micro, entre os grupos sociais". Sua forma social contemporânea estaria expressa no "excesso de poder que impede o reconhecimento do outro — pessoa, classe, gênero ou raça — mediante o uso da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, configurando o oposto das possibilidades da sociedade democrática contemporânea" (Tavares dos Santos et al., 1998). O problema desta definição parece estar em que não esclarece onde e como o excesso se manifesta, o que implica dizer os limites, as regras, as normas legitimamente aceitas para o exercício do poder. Isso evidentemente desembocaria no Estado de Direito e na construção da nação. Qualquer que seja o balizamento do excesso de poder, afirmá-lo conduz à questão não discutida do limite (Zaluar, 1999).
Todavia, para este autor, desapareceria a fronteira entre a violência física, a qual oprime pelo excesso da força corporal ou armada, e a simbólica, a qual exclui e domina por meio da linguagem. Não haveria, portanto, um nicho especial para tratar da violência como o uso de instrumentos da força bruta (Zaluar, 1999), desarticulada da violência simbólica presente no institucional ou no Estado, como fica claro no trecho seguinte, referido às idéias de Foucault e de Bourdieu:
Podemos, deste modo, considerar a violência como um dispositivo de excesso de poder, uma prática disciplinar que produz um dano social, atuando em um diagrama espaço-temporal, a qual se instaura com uma justificativa racional, desde a prescrição de estigmas até a exclusão, efetiva ou simbólica. Esta relação de excesso de poder configura, entretanto, uma relação social inegociável porque atinge, no limite, a condição de sobrevivência, material ou simbólica, daqueles que são atingidos pelo agente da violência. (Tavares dos Santos et al., 1998)
Entre os cientistas sociais e pedagogos que focalizaram não a criminalidade violenta, mas sim a escola, um dos autores de ainda maior repercussão5 continua sendo Pierre Bourdieu, com o seu conceito de violência simbólica, uma conceituação mais ampla e difusa de dominação. A aplicação não crítica das teorias de Bourdieu na atual conjuntura urbana do Brasil tem, entretanto, trazido algumas confusões. Na escola, hoje, a violência apresenta a dupla dimensão mencionada acima: (1) a violência física perpetrada por traficantes ou bandidos nos bairros onde se encontram, assim como por alguns dos agentes do poder público encarregados da manutenção da ordem e da segurança, e (2) a violência que se exerce também pelo poder das palavras que negam, oprimem ou destroem psicologicamente o outro.
Esta última, segundo Bourdieu (1989, p. 146), seria operada sempre e necessariamente pelos mandatários do "Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima", o que inclui o professor. Através dela é que se instituiria e se exerceria o poder simbólico, sem que se coloque a questão dos limites ou dos excessos no uso da linguagem. A violência simbólica seria o
[...] poder de construção da realidade, que tende a estabelecer [...] o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social), supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (Bourdieu, 1989, p. 9)
Para Bourdieu, o símbolo é, por excelência, instrumento de integração social, pois cria a possibilidade de consenso sobre o sentido do mundo e, portanto, da dominação. Enquanto instrumento estruturado e estruturante de comunicação e de conhecimento, os símbolos, constituídos em sistemas simbólicos, são fundamentais para o exercício da dominação na medida em que são "[...] instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra [...] dando o reforço da sua própria força que as fundamenta e contribuindo assim, [...] para a domesticação dos dominados." (Bourdieu, 1989, p. 11).
Nesse processo, tanto de tentativa de produção de consenso, quanto de violência, é preciso levar em conta um conceito utilizado por Bourdieu para caracterizar a reprodução de práticas e símbolos que asseguram a continuidade da sociedade: o habitus. Embora tenha sido empregado primeiramente pelos gregos, o conceito ganhou importância sociológica na teoria do processo civilizatório de Norbert Elias e na da ação social de Bourdieu. A maior diferença entre a noção de habitus utilizada tanto pelos gregos quanto por Durkheim e aquela adotada por Bourdieu é a que se refere à visão de Estado justo e de Estado injusto. A noção de habitus de Bourdieu difere da dos demais autores na medida em que estabelece "[...] uma relação de homologia estrutural e relação de dependência causal; a forma das determinações causais é definida pelas relações estruturais e a força de dominação é tanto maior quanto mais aproximadas das relações de produção econômica estiverem as relações em que ela se exerce." (Bourdieu, 1989, p.154).
Para Bourdieu, o habitus constitui um conjunto adquirido de padrões de pensamento, comportamento e gosto capaz de ligar a estrutura com a prática social (ou ação social). Assim, o habitus resulta da relação entre condições objetivas e história incorporada, capaz de gerar disposições duráveis de grupos e classes. O conceito oferece uma base possível para uma aproximação cultural da desigualdade estrutural e permite um foco sobre as agências de socialização. Desse modo, pode sugerir a indistinção entre os mecanismos de dominação (ou de negação do outro como sujeito) e qualquer processo de reprodução cultural ou de socialização em relações sociais ordenadas. Ficaria, portanto, difícil distinguir sociedades democráticas das ditatoriais ou totalitárias.
A utilização da teoria da violência simbólica torna-se ainda mais problemática porque hoje, nas cidades brasileiras, as agências de socialização e "reprodução cultural" devem incluir tanto a família e a escola quanto as quadrilhas de traficantes e as galeras de rua. Segundo essa teoria, a escola opera a violência simbólica ao reforçar o habitus primário (socialização familiar que, entre outras tarefas, repassa o capital cultural de classe) daqueles destinados a ocuparem posições médias e altas na hierarquia social. Além disso, ao excluir, selecionar e manter por mais alguns anos nos bancos escolares alguns representantes dos estratos dominados, a escola garante a credibilidade da ideologia do mérito e contribui para a reposição dos estratos domesticados dos dominados. Contudo, temos a socialização concorrente, mas nem por isso libertadora, das quadrilhas de traficantes, das torcidas organizadas e das galeras que instituem um outro habitus, que não está baseado no mérito, o qual Norbert Elias (1993 e 1997) denominou o etos guerreiro, que modifica a maneira de viver dos destinados a ocupar as posições subalternas, diminuindo a expectativa de vida dos jovens, especialmente dos homens, instituindo o medo e a insegurança na sua relação com a vizinhança e a própria cidade, além de instituir o poder do mais forte ou, pior, do mais armado (Zaluar, 1998b).
Esta dificuldade no uso do conceito de violência simbólica parece derivar também de uma confusão entre conflito e violência presente na reflexão dos cientistas sociais brasileiros sobre os atuais fenômenos da violência entre os jovens. É comum associar-se violência, mero instrumento usado com maior ou menor intensidade, a um estado social permanente e excessivo na sociedade como um todo ou entre os excluídos, explorados ou dominados. O conflito é necessário e inevitável nas sociedades justamente porque o consenso nunca é total, nem fechado, nem muito menos permanente.
Assim sendo, trata-se de garantir os espaços para a sua manifestação sem que um ou mais dos participantes possa destruir ou calar definitivamente os seus oponentes, o que torna o consenso incompleto e precário, porém muito mais dinâmico (Zaluar, 1999). Pois a violência física (e não a simbólica) sempre foi empregada, no Brasil e no mundo, para forçar o consenso, defender a ordem social a qualquer custo, manter a unidade ou a totalidade a ferro e fogo (Soares, D'Araújo e Castro, 1994; Zaverucha, 1994). A questão parece estar, então, não na negação do conflito, mas na forma de manifestação deste que possibilita ou não o estabelecimento da negociação, na qual se exerce a autonomia do sujeito e se cria novas idéias pela palavra. Isso necessariamente envolve diferentes personagens, concepções e relações.
Georg Simmel é um dos mais importantes teóricos do conflito, o qual concebe como uma forma de sociabilidade na medida em que cria uma unidade por meio da interação entre os oponentes. No desenrolar do conflito, estes desenvolvem regras de conduta e meios de expressão de suas divergências e de seus interesses opostos, instituindo a socialização para o conflito e a medida ou limite para a violência, ou seja, o espaço para o comportamento socializado no próprio embate (Simmel, 1995). Nesse sentido, o conflito contribui para a regulação social, para a invenção de normas e de regras comuns aos partidos em causa, baseadas em idéias partilhadas de justiça, respeito mútuo e espírito esportivo. O autor exclui dessa concepção de conflito socializador as manifestações extremas de violência que não poupam o adversário e têm por objetivo a sua destruição moral, psicológica ou física (idem, pp. 35-40). Embora não tenha aprofundado a questão da ação belicosa entre inimigos, certamente, para ele, a violência estaria na destruição física do adversário ou na imposição do silêncio, pela perda do acesso à linguagem, ou seja, na impossibilidade de manter o conflito pela desistência forçada do adversário, pelo seu esmagamento psicológico, no qual deixa de ter confiança na sua capacidade de lutar ou na possibilidade de existirem regras justas (Zaluar, 1999).
Norbert Elias, que usou o conceito de habitus antes de Bourdieu para se referir a práticas internalizadas através de longos processos de socialização variáveis segundo a época e a classe social, aponta para desenvolvimentos variáveis e divergentes, além de fornecer um sinal positivo à domesticação ou ao autocontrole, o que resulta em maior precisão para o conceito de violência. Entre os habitus que descreve, o etos guerreiro é aquele que designa os comportamentos que estimulam a alegria e a liberdade de competir para vencer o adversário, destruindo-o fisicamente, e o prazer de infligir dor física e moral ao vencido. Este etos teria sido ultrapassado no processo civilizador ocorrido em algumas sociedades ocidentais, mas a possibilidade de retrocesso neste processo não pode ser descartada, visto que ele resulta da boa proporção entre o orgulho de não se submeter a nenhum compromisso exterior ou poder superior, típico do etos guerreiro, e o orgulho advindo do autocontrole, próprio da sociedade domesticada.
Por isso não teria atingido com a mesma intensidade todas as pessoas, classes sociais ou sociedades. Onde o Estado nacional é fraco no monopólio da violência, um prêmio é posto nos papéis militares, o que termina na consolidação de uma classe dominante militar. Onde os laços segmentais (familiares, étnicos ou locais) são mais fortes, o que acontece em bairros populares e vizinhanças pobres mas também na própria organização espacial das cidades que confundem etnia e bairro, o orgulho e o sentimento de adesão ao grupo diminuem a pressão social para o controle das emoções e da violência física, resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência nos conflitos. Nas democracias liberais, nas nações em que o Estado é forte e o jogo parlamentar se instituiu, o etos guerreiro foi substituído pela tensão — o agon dos gregos — presente no esporte e em outros jogos instituídos que permitem a expressão de emoções conflituosas, assim como a busca da glória individual e coletiva em detrimento dos oponentes, sem contudo eliminá-los (Zaluar, 1998). Ou seja, a continuidade dos jogos possibilita que os adversários vençam nas próximas vezes. Não elimina o conflito, mas dá-lhe nova institucionalidade, que desestimula a violência física e psicológica como meios de destruição do outro (Zaluar, 1999). O conceito de violência psicológica substitui o de violência simbólica, evitando as indistinções apontadas acima, por estabelecer os limites e as regras de convivência como parâmetros para sua caracterização como violência.
Esta última, segundo Bourdieu (1989, p. 146), seria operada sempre e necessariamente pelos mandatários do "Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima", o que inclui o professor. Através dela é que se instituiria e se exerceria o poder simbólico, sem que se coloque a questão dos limites ou dos excessos no uso da linguagem. A violência simbólica seria o
[...] poder de construção da realidade, que tende a estabelecer [...] o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social), supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (Bourdieu, 1989, p. 9)
Para Bourdieu, o símbolo é, por excelência, instrumento de integração social, pois cria a possibilidade de consenso sobre o sentido do mundo e, portanto, da dominação. Enquanto instrumento estruturado e estruturante de comunicação e de conhecimento, os símbolos, constituídos em sistemas simbólicos, são fundamentais para o exercício da dominação na medida em que são "[...] instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra [...] dando o reforço da sua própria força que as fundamenta e contribuindo assim, [...] para a domesticação dos dominados." (Bourdieu, 1989, p. 11).
Nesse processo, tanto de tentativa de produção de consenso, quanto de violência, é preciso levar em conta um conceito utilizado por Bourdieu para caracterizar a reprodução de práticas e símbolos que asseguram a continuidade da sociedade: o habitus. Embora tenha sido empregado primeiramente pelos gregos, o conceito ganhou importância sociológica na teoria do processo civilizatório de Norbert Elias e na da ação social de Bourdieu. A maior diferença entre a noção de habitus utilizada tanto pelos gregos quanto por Durkheim e aquela adotada por Bourdieu é a que se refere à visão de Estado justo e de Estado injusto. A noção de habitus de Bourdieu difere da dos demais autores na medida em que estabelece "[...] uma relação de homologia estrutural e relação de dependência causal; a forma das determinações causais é definida pelas relações estruturais e a força de dominação é tanto maior quanto mais aproximadas das relações de produção econômica estiverem as relações em que ela se exerce." (Bourdieu, 1989, p.154).
Para Bourdieu, o habitus constitui um conjunto adquirido de padrões de pensamento, comportamento e gosto capaz de ligar a estrutura com a prática social (ou ação social). Assim, o habitus resulta da relação entre condições objetivas e história incorporada, capaz de gerar disposições duráveis de grupos e classes. O conceito oferece uma base possível para uma aproximação cultural da desigualdade estrutural e permite um foco sobre as agências de socialização. Desse modo, pode sugerir a indistinção entre os mecanismos de dominação (ou de negação do outro como sujeito) e qualquer processo de reprodução cultural ou de socialização em relações sociais ordenadas. Ficaria, portanto, difícil distinguir sociedades democráticas das ditatoriais ou totalitárias.
A utilização da teoria da violência simbólica torna-se ainda mais problemática porque hoje, nas cidades brasileiras, as agências de socialização e "reprodução cultural" devem incluir tanto a família e a escola quanto as quadrilhas de traficantes e as galeras de rua. Segundo essa teoria, a escola opera a violência simbólica ao reforçar o habitus primário (socialização familiar que, entre outras tarefas, repassa o capital cultural de classe) daqueles destinados a ocuparem posições médias e altas na hierarquia social. Além disso, ao excluir, selecionar e manter por mais alguns anos nos bancos escolares alguns representantes dos estratos dominados, a escola garante a credibilidade da ideologia do mérito e contribui para a reposição dos estratos domesticados dos dominados. Contudo, temos a socialização concorrente, mas nem por isso libertadora, das quadrilhas de traficantes, das torcidas organizadas e das galeras que instituem um outro habitus, que não está baseado no mérito, o qual Norbert Elias (1993 e 1997) denominou o etos guerreiro, que modifica a maneira de viver dos destinados a ocupar as posições subalternas, diminuindo a expectativa de vida dos jovens, especialmente dos homens, instituindo o medo e a insegurança na sua relação com a vizinhança e a própria cidade, além de instituir o poder do mais forte ou, pior, do mais armado (Zaluar, 1998b).
Esta dificuldade no uso do conceito de violência simbólica parece derivar também de uma confusão entre conflito e violência presente na reflexão dos cientistas sociais brasileiros sobre os atuais fenômenos da violência entre os jovens. É comum associar-se violência, mero instrumento usado com maior ou menor intensidade, a um estado social permanente e excessivo na sociedade como um todo ou entre os excluídos, explorados ou dominados. O conflito é necessário e inevitável nas sociedades justamente porque o consenso nunca é total, nem fechado, nem muito menos permanente.
Assim sendo, trata-se de garantir os espaços para a sua manifestação sem que um ou mais dos participantes possa destruir ou calar definitivamente os seus oponentes, o que torna o consenso incompleto e precário, porém muito mais dinâmico (Zaluar, 1999). Pois a violência física (e não a simbólica) sempre foi empregada, no Brasil e no mundo, para forçar o consenso, defender a ordem social a qualquer custo, manter a unidade ou a totalidade a ferro e fogo (Soares, D'Araújo e Castro, 1994; Zaverucha, 1994). A questão parece estar, então, não na negação do conflito, mas na forma de manifestação deste que possibilita ou não o estabelecimento da negociação, na qual se exerce a autonomia do sujeito e se cria novas idéias pela palavra. Isso necessariamente envolve diferentes personagens, concepções e relações.
Georg Simmel é um dos mais importantes teóricos do conflito, o qual concebe como uma forma de sociabilidade na medida em que cria uma unidade por meio da interação entre os oponentes. No desenrolar do conflito, estes desenvolvem regras de conduta e meios de expressão de suas divergências e de seus interesses opostos, instituindo a socialização para o conflito e a medida ou limite para a violência, ou seja, o espaço para o comportamento socializado no próprio embate (Simmel, 1995). Nesse sentido, o conflito contribui para a regulação social, para a invenção de normas e de regras comuns aos partidos em causa, baseadas em idéias partilhadas de justiça, respeito mútuo e espírito esportivo. O autor exclui dessa concepção de conflito socializador as manifestações extremas de violência que não poupam o adversário e têm por objetivo a sua destruição moral, psicológica ou física (idem, pp. 35-40). Embora não tenha aprofundado a questão da ação belicosa entre inimigos, certamente, para ele, a violência estaria na destruição física do adversário ou na imposição do silêncio, pela perda do acesso à linguagem, ou seja, na impossibilidade de manter o conflito pela desistência forçada do adversário, pelo seu esmagamento psicológico, no qual deixa de ter confiança na sua capacidade de lutar ou na possibilidade de existirem regras justas (Zaluar, 1999).
Norbert Elias, que usou o conceito de habitus antes de Bourdieu para se referir a práticas internalizadas através de longos processos de socialização variáveis segundo a época e a classe social, aponta para desenvolvimentos variáveis e divergentes, além de fornecer um sinal positivo à domesticação ou ao autocontrole, o que resulta em maior precisão para o conceito de violência. Entre os habitus que descreve, o etos guerreiro é aquele que designa os comportamentos que estimulam a alegria e a liberdade de competir para vencer o adversário, destruindo-o fisicamente, e o prazer de infligir dor física e moral ao vencido. Este etos teria sido ultrapassado no processo civilizador ocorrido em algumas sociedades ocidentais, mas a possibilidade de retrocesso neste processo não pode ser descartada, visto que ele resulta da boa proporção entre o orgulho de não se submeter a nenhum compromisso exterior ou poder superior, típico do etos guerreiro, e o orgulho advindo do autocontrole, próprio da sociedade domesticada.
Por isso não teria atingido com a mesma intensidade todas as pessoas, classes sociais ou sociedades. Onde o Estado nacional é fraco no monopólio da violência, um prêmio é posto nos papéis militares, o que termina na consolidação de uma classe dominante militar. Onde os laços segmentais (familiares, étnicos ou locais) são mais fortes, o que acontece em bairros populares e vizinhanças pobres mas também na própria organização espacial das cidades que confundem etnia e bairro, o orgulho e o sentimento de adesão ao grupo diminuem a pressão social para o controle das emoções e da violência física, resultando em baixos sentimentos de culpa no uso aberto da violência nos conflitos. Nas democracias liberais, nas nações em que o Estado é forte e o jogo parlamentar se instituiu, o etos guerreiro foi substituído pela tensão — o agon dos gregos — presente no esporte e em outros jogos instituídos que permitem a expressão de emoções conflituosas, assim como a busca da glória individual e coletiva em detrimento dos oponentes, sem contudo eliminá-los (Zaluar, 1998). Ou seja, a continuidade dos jogos possibilita que os adversários vençam nas próximas vezes. Não elimina o conflito, mas dá-lhe nova institucionalidade, que desestimula a violência física e psicológica como meios de destruição do outro (Zaluar, 1999). O conceito de violência psicológica substitui o de violência simbólica, evitando as indistinções apontadas acima, por estabelecer os limites e as regras de convivência como parâmetros para sua caracterização como violência.
(Fonte: Alba Zaluar e Maria Cristina Leal)
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