"O ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi (foto acima), nega que programa com propostas para vários setores da sociedade vá enfraquecer o Legislativo ou mudar o atual sistema político do país.
Um roteiro abrangente que oferecesse ao legislador, ministérios e Judiciário uma mera apresentação de ideias e sugestões. Essa, segundo o ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi, era a ideia inicial da terceira versão Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Em entrevista ao Correio/Estado de Minas para a série que abordou o programa, Vannuchi afasta as críticas de que o PNDH seja uma tentativa de alteração do sistema de governo vigente para modelos mais próximos a democracias parciais, como o da Venezuela.
Ele também nega que o programa tenha a intenção de enfraquecer o Legislativo ou que altere cláusulas pétreas da Constituição, conta os bastidores da crise que eclodiu no governo, com os protestos ao plano pelo ministro da Defesa Nelson Jobim, e afirma: o PNDH é apenas um reflexo de recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU).
Ponto a ponto
Críticas pesadas
O programa é absolutamente constitucional. Estamos pedindo que a Constituição seja mais respeitada. Estamos pedindo respeito ao artigo 5º, rigorosamente ainda violado e desrespeitado. O programa foi detalhado sem nenhuma intenção de colocar um pouquinho de chavismo aqui. Esses fantasmas são muito comparáveis aos de 64, em que o discurso era exatamente este “o Brasil está caindo nas mãos do comunismo”. É crítica ideológica de quem faz, atribuindo ideologias ao outro. Sou um intelectual de intermediação. É tolice achar que fazer conferência é propor a democracia direta contra a democracia representativa, pelo contrário. As conferências e o PNDH são um instrumento muito forte de trazer para a disputa democrática, queremos projetos de lei, não vamos fazer a disputa por vias não institucionais. Na Colômbia isso vira Farc e não vai para lugar nenhum. E o ciclo da luta armada é o ciclo de outra era, de um mundo que acabou. Agora é um mundo da afirmação dos direitos humanos da democracia e da disputa democrática.
Legislativo fraco
A esquerda durante longo período teve rejeição à ideia da representação, por entendê-la como foram os primeiros parlamentos, como o inglês, formados por grandes donos de terras. O surgimento do PT, com o Lula, é a esquerda que se afasta dessa posição leninista dos sovietes. Aderimos todos à visão de luta institucional, parlamentar. O PNDH pretende mais participação popular. Em 22 anos de Constituição, houve duas consultas apenas, o plebiscito para decidir sobre parlamentarismo ou presidencialismo e o referendo de armamento. A concepção da ideia é de que o parlamento, já que fez só dois, então não quer. Por isso o uso do termo “desbloqueio”. Não tem nada de chavismo, nosso caminho é outro, é o da valorização do parlamento. A grande aposta estratégica e política do governo Lula nesse momento é ampliar as bancadas parlamentares todas. O programa é um longo processo democrático que não ameaça a Constituição, não ameaça o Legislativo. Ao contrário, ele oferece ao Legislativo apenas uma chance de, se quiser, colocar em prática, porque ele é absolutamente soberano pra decidir o que é lei e o que não é. Isso não é lei. Um programa pode se cumprir em 50% ou em apenas 20%. Nenhum da história foi 100% cumprido. E são recomendações, mas ele foi recebido pelos críticos como se fosse um conjunto de leis.
Imposição
O Lula tem grandes dificuldades para aprovar os projetos do governo. O governo queria aprovar o Pré-sal antes do Natal, era questão de honra. Estamos no meio de abril e ainda não foi inteiramente votado. O governo apoia a aprovação da PEC 438 que tramita há 15 anos sobre o trabalho escravo, e não aprova. A vontade do Legislativo é absolutamente soberana. Quem fez o programa sabe que nada nele é garantia de nada. Tudo que ele pretende é propiciar o debate e levar o governo a se posicionar a favor disso ou daquilo.
Temas demais
Há um problema de recorte, mas esse é um problema tema, não é um erro. Discutir direitos econômicos não é falar de renda básica e cidadania. São os direitos do trabalho, a questão de insalubridade, condições de trabalho, jornada de trabalho, previdência, o direito a terra. Todos esses pontos estão alinhados com as recomendações dadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) de tempos em tempos. A intenção foi a de criar um roteiro muito concreto. Nosso esforço foi de fazer abrangente, quase que para oferecer ao legislador, aos ministérios e ao Judiciário, como mera apresentação de ideias e sugestões. Como decreto do presidente, tem força de orientação, um banco de demandas e propostas que é um pouco voz dos que não têm voz. A pressão da ONU é geral. Agora, nós, dos direitos humanos de maneira geral, não achamos que a pressão da ONU é coisa ruim. As pressões da ONU são tidas como coisa negativa apenas nos governos de recorte autoritário. Porque sempre há uma relação tensa. Cuba, por exemplo, não aceita as visitas dos relatores. O Brasil é um dos poucos países do mundo que têm o convite permanente para a visita de qualquer relator. Os relatores fazem as recomendações. Se eles voltam cinco anos depois e vêm que a situação está igual ou pior, a ficha do Brasil vai ficando mais feia. É só isso. A ONU não tem poder pungente.
Reações
Sustento que essa reação não se prende ao texto do programa. Ela resulta do fato de haver uma fissura, Defesa e Direitos Humanos, PMDB e PT no governo. Eu, como um ministro ocasional, mas 30 anos assessor do Lula. O Jobim, com a força de quem foi ministro da Justiça do Fernando Henrique Cardoso e presidente do Supremo. Evidentemente é um cenário político de uma imprensa profundamente crítica ao governo Lula. Os partidos de oposição vislumbraram a oportunidade que é ideal. Além disso, o momento de pleno recesso no Congresso, com a mídia sem assunto para cobrir. E em terceiro lugar, o período eleitoral em si.
Comissão da verdade
Na semana passada ele (o ministro Nelson Jobim, que chegou a colocar o cargo à disposição por causa da criação da Comissão da Verdade) voltou a fazer críticas ao programa, mas reconheceu que o que houve foi uma dificuldade de comunicação. O único ministério onde houve discordância foi no da Defesa e não foi tão grande quanto se criou a impressão. Trabalhamos juntos naquela redação. Na última hora houve um trecho que era “repressão política”. O presidente bateu o martelo comigo, relatou ao Jobim e recebeu o pedido de colocar “repressão e conflitos políticos”. O que não teria o menor problema, só que o presidente viajou pra Copenhague e essa orientação chegou quando o PNDH já estava impresso, com a assinatura dos ministros etc. Não havia a menor condição de corrigir tudo isso. Avisei o presidente e o Jobim que não daria tempo de mudar o texto. Foi aí que houve a crise. Mas isso foi contornado em janeiro, quando o presidente fez outro decreto criando o grupo de trabalho para o anteprojeto. Há pessoas que até hoje afirmam que não houve ditadura ou mesmo tortura. Os generais Newton Cruz e Leônidas Pires Gonçalves, por exemplo, disseram isso outro dia. Eu prezaria mais se eles dissessem, por isso, “como vocês iam enfiar o Brasil em uma ditadura comunista, que acaba com a família e a propriedade, a tortura foi necessária”. Mas eles dizem: não houve tortura. A referência é a ONU, e antes de a ONU existir, eram as definições do direito internacional. O que vai acontecer é que a Comissão da Verdade, se o Legislativo decidir fazer, provavelmente terá a composição do que se chama vulgarmente de notáveis, ou seja, não representantes das áreas. Senão, por experiências anteriores, as coisas não avançam. O relatório final que será entregue ao presidente da República, que pode até escolher não divulgar, tem que demonstrar que é uma comissão imparcial. Sem nenhuma frase para dizer que estava certo ou estava errado. Ela tem que reconstruir o processo histórico e falar das violências dos dois lados. Talvez o maior beneficiário disso sejam as Forças Armadas. Mais do que quem perdeu alguém, porque pra eles a dor é irreparável, mas para as Forças Armadas, isso tira o peso do ranço pela instituição. O julgamento político do regime a Constituição já fez. É a democracia que triunfou ali, então o regime está julgado. Está feita a transição. E nós não estamos com o olho no retrovisor, estamos com o olho pra frente. Queremos um país aplaudindo as Forças Armadas, que eu elogio pela sua presença no Haiti, por exemplo, aquilo é defesa dos direitos humanos. Pra que continuar pro resto da vida com um negócio que provavelmente não envolve ninguém na cadeia?
Representatividade
O segundo PNDH, que foi maior, mobilizou 400 pessoas. Esse mobilizou 14 mil. O próximo deve mobilizar 140 mil. É muito pouco. Se fossem 190 milhões, melhor. Agora, 14 mil é um número expressivo. Como esse programa recolheu propostas aprovadas em mais de 50 conferências, aí seriam milhões. É um número expressivo. Agora a objeção está ligada a essa interpretação preconceituosa, pesada de que isso é lei, de que invade. Nesse sentido, 14 mil seria irrisório se fosse pra definir uma nova Constituição. Não combato a oposição do meu adversário, eu combato a caricatura formada.
Minorias e elite
O rico e o branco têm todos os direitos da Constituição e têm mecanismos capazes de fazer valer. Uma conferência de Direitos Humanos necessariamente prioriza segmentos vulneráveis, aqueles cujos direitos são iguais aos dos ricos. Nesse sentido é evidente que o PNDH vai ouvir movimentos que se articulam nessa área. E quem se articula nessa área são os índios, negros, ciganos, quilombolas etc... A elite branca não é discriminada porque no PNDH não há nenhuma formulação que possa ser caracterizada assim. Criou-se uma paranoia de interpretação. O que estamos dizendo lá é o discurso dos direitos humanos. Onde for pauta de direitos humanos as minorias estarão sempre centradas.
Pontos pendentes
Ele não é um programa perfeito, reconheço que tem problemas, tem erros. Mas ele não tem 21 ações, são 521. Há um enorme consenso na área da criança e do adolescente, pessoas com deficiência, alguns dos temas homossexuais. A união estável, por exemplo, entre pessoas do mesmo sexo é um debate que precisa ser feito. As empresas já têm feito, o Judiciário está emitindo decisões. Se aquelas forças contrárias tiverem maioria no parlamento, não adianta que não vai ter lei e pronto. E nós vamos nos curvar à disputa, mas vamos a cada dois anos apresentar a lei. E a minha experiência é que deve acontecer o mesmo que houve com o divórcio. No início é polêmica, com o tempo, acaba sendo aprovado."
(Fonte: Daniela Almeida - Correio Braziliense)
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